DivulgaçãoO venezuelano Carlos J. Rangel: hoje "há líderes e partidos que oferecem uma alternativa à hegemonia socialista"

‘Sem renovação das elites, o populismo prospera’, diz Carlos J. Rangel

30.06.19 10:30

O livro Do bom selvagem ao bom revolucionário, escrito pelo jornalista, político e diplomata venezuelano Carlos Rangel, é um clássico do pensamento liberal da América Latina. Desde que foi publicado, em 1976, a obra tornou-se um contraponto ao Veias abertas da América Latina, lançado cinco anos antes pelo uruguaio Eduardo Galeano. Mas, em vez de jogar a culpa de todos os fracassos da região nos Estados Unidos, como fez o uruguaio, o venezuelano preferiu explicar por que as promessas de desenvolvimento nunca se concretizarem. Entres as razões apontadas por ele estão a inclinação por caudilhos, o antiamericanismo, o cultivo do mito de um “bom selvagem” e a fragilidade do estado de direito. Rangel faleceu em 1988, antes de ver seu rico país ser tomado pela antítese do liberalismo que ele tanto pregou em palestras, matérias de jornais e livros.

Este ano, a obra de Carlos Rangel foi relançada pela Faro Editorial. Quem escreve o prólogo é o filho do autor, Carlos J. Rangel. Nascido em Caracas, o filho – que tem o mesmo nome do pai – formou-se em administração e foi morar nos Estados Unidos. Deu aulas de gestão de tecnologia e inovação na Universidade da Califórnia e, mais tarde, na Universidade Atlantic da Flórida.

Aos 63 anos, Rangel, o filho, já publicou três livros. Entre eles, um sobre seu país de nascimento: Venezuela Impossível: Crônicas e Reflexões sobre Democracia e Liberdade. A maior parte de seu tempo atual ele dedica à consultoria AMLA, focada em negócios em países da América Latina. A Venezuela, que já foi um dos países em que ele já se aventurou a fazer negócios, naturalmente deixou de estar entre as possibilidades. Por telefone, Carlos J. Rangel conversou com Crusoé.

Em que a América Latina hoje é diferente daquela que foi descrita por seu pai no livro Do bom selvagem ao bom revolucionário, lançado em 1976?
Logo na introdução, meu pai escreveu que, “desde Simón Bolívar até Carlos Fuentes, todo latino-americano profundo e sincero reconheceu, ao menos em algum momento, o fracasso, até agora, da América Latina”. Naquela época, já existiam ideias liberais, mas a maior parte dos governantes preferia cometer os mesmos erros do passado. Repetiam as políticas de sempre à espera de um resultado diferente, que nunca chegava. Faziam isso não por um erro de aprendizagem, mas porque essa atitude é parte da natureza humana. A situação agora é diferente. Vários países já acolheram o liberalismo e experimentaram uma melhora no padrão de vida da população. Entre os valores adotados pelos seus governantes estão a desconfiança em relação a líderes muito fortes, a limitação do poder do estado, a rejeição das reclamações históricas e a aceitação do pluralismo democrático. Diversos líderes atualmente apoiam o liberalismo. Entre eles estão o presidente do Chile, Sebastián Piñera, o brasileiro Jair Bolsonaro e o ex-presidente mexicano Vicente Fox. Eis a principal diferença entre a América Latina de ontem e de hoje: há líderes e partidos que oferecem uma alternativa à hegemonia socialista, algo que não acontecia em 1976. O livro de meu pai contribuiu para essa mudança.

O pai, Carlos J. Rangel, que faleceu em 1988, escreveu o clássico “Do bom selvagem ao bom revolucionário”, relançado este ano pela Faro Editorial
A elite latino-americana hoje pensa de forma diferente? 
Isso varia de país para país. Naqueles em que a democracia e o capitalismo funcionam, as elites mudaram. Não são mais as mesmas e há uma grande chance de pensarem de forma distinta das que as precederam. Nas nações em que a situação do estado de direito é fraca, não houve renovação. Nesses países, o comportamento das elites de 40 anos atrás é muito semelhante ao de hoje. Basicamente, o que fazem é uma apologia do caudilhismo.

Por que as elites se renovam em países com capitalismo e democracia? 
É um processo parecido com o que acontece no mundo do esporte. Os melhores atletas não podem subir para sempre no pódio. Há uma renovação orgânica. Da mesma forma, em uma democracia sadia, os partidos se revezam no poder. Na economia, as regras capitalistas também se encarregam de fazer isso. Nos Estados Unidos, um ditado muito comum afirma que o pai cria a fortuna, o filho gasta e o neto fica sem nada (“Rich dad, noble son, poor grandson”, em inglês). Quando alguém inventa uma coisa, seja um produto inovador ou um sistema de distribuição mais eficiente, ele fica rico porque tem um lucro maior. Com o tempo, as vantagens que o pioneiro obteve passam a ser copiadas por competidores e perdem relevância. Então, será necessário adaptar-se ou criar outra coisa. Como outras pessoas também estarão ávidas por empreender, a probabilidade de substituição das elites é grande.

DivulgaçãoDivulgaçãoPara o escritor Carlos J. Rangel, desdém e ojeriza pelos novos ricos é um exemplo do espírito de tribo das elites
Por que essa renovação às vezes não acontece? 
O ser humano é movido pelo instinto de sobrevivência. Em uma sociedade, é comum que ele se organize em grupos para se proteger da melhor forma. Foi assim que surgiram as tribos. Esses grupos, por sua vez, criam mecanismos para evitar perder poder e manter o status quo. Ninguém quer perder privilégios, especialmente se isso puder colocar em risco a própria sobrevivência. A elite, de certo modo, atua como uma tribo. O principal objetivo de qualquer elite é sobreviver. Então, elas elaboram mecanismos para estender os seus próprios benefícios e para impedir o surgimento de novos grupos. Seria mais ou menos como um atleta que consome drogas e hormônios para ir além do limite de seu organismo e continuar competindo por mais anos. O desdém e a ojeriza que as elites nutrem pelos novos ricos, ou emergentes, é uma demonstração desse espírito de tribo.

Quais são os mecanismos mais empregados pelas elites para manter seus privilégios? 
Na política, é comum a manipulação dos processos seletivos dentro dos partidos para evitar a ascensão de dissidências internas. Os líderes das siglas raramente permitem a escolha livre de seus substitutos. Com isso, eles debilitam a função primária dos partidos, que é a de agrupar pessoas com interesses comuns para influenciar as políticas ou, até, assumir o governo. Esse comportamento de autopreservação acaba afastando o resto da cidadania da política, o que é muito ruim. Na economia, as elites tentam se manter por meio da instituição de monopólios. Não raro, as elites políticas e as elites econômicas acabam se aliando para permanecer no poder. Contra isso, o liberalismo efetivo se esforça em garantir o estado de direito, para que a lei seja aplicada igualmente e para que a elite não possa criar distorções.

O que acontece quando as elites não se renovam? 
Ao afastar os cidadãos da política, há uma queda de representatividade, o que cria condições propícias para o desenvolvimento do populismo. A meu ver, este é um dos fatores pelos quais temos visto um aumento do populismo na América Latina. Sem renovação das elites, o populismo prospera.

O ditador da Veneuela, Nicolás Maduro, é um populista?
Claramente. Como seu objetivo maior é manter-se no poder, Maduro tem feito todo o possível para evitar que a democracia e o capitalismo funcionem. Como tampouco é um político popular, tem usado seu aparato repressivo para alcançar seus objetivos políticos. Maduro também fala o tempo todo de complôs contra ele. Dessa forma, espera nutrir o sentimento tribal de seu grupo e ganhar força. Para seus seguidores, ele também faz promessas cada vez mais impossíveis. Como não consegue cumprir aquelas que já fez, precisa sempre criar uma nova, aumentando ainda mais as expectativas em torno de seu governo.

A ideologia socialista ou comunista o ajuda nessa missão? Maduro não é um ideólogo. Melhor seria descrevê-lo como um doutrinário. Ele simplesmente segue o manual, a doutrina, aproveitando a natureza do socialismo comunista para concentrar poder e riqueza. Maduro usa todas as ferramentas disponíveis para aferrar-se ao poder. A ideologia o ajuda nisso.

A ideologia marxista precisou se adaptar para continuar servindo as elites que querem se manter no poder? 
Sim. O que vimos ao longo dos séculos foi uma reviravolta histórica. Quando ficou evidente que a promessa de promover o bem-estar ilimitado do comunismo não se realizou, ocorreu uma mudança de posicionamento. A ideologia marxista, então, começou a denunciar a sociedade de consumo. Passou a condenar o verdadeiro bem-estar, criado pelos incentivos à criatividade do capitalismo. O que se manteve foi a ideia de que, para paliar as misérias dos mais desafortunados, é preciso distribuir riqueza. O comunismo, nesse ponto, é uma das manifestações do mercantilismo.

DivulgaçãoDivulgaçãoCapa da reedição do livro “Do bom selvagem ao bom revolucionário”, publicado este ano pela Faro Editorial
O sr. poderia explicar melhor a relação entre comunismo e mercantilismo? 
No mercantilismo, que foi adotado pela Península Ibérica entre os séculos XIV e XVIII na América Latina, a economia é vista como um jogo de ganhadores e perdedores, em uma relação de soma zero. No passado, os reis europeus concederam licenças para que grupos explorassem as riquezas das colônias. Os frutos e rendas advindos desses negócios deveriam ser enviados para as metrópoles. No mercantilismo, um país rico era aquele que tinha mais joias, ouro e outros bens. Para os reformadores, que iam contra esse sistema, a solução passava por distribuir a riqueza que já tinha sido acumulada. Essas visões de mundo se cristalizaram muito bem na América Latina. Quando a ideologia comunista surgiu, ela se identificou diretamente com essa herança cultural e ganhou a simpatia de muitos proprietários de terras. O liberalismo vê o mundo de outro ângulo. Segundo disse Adam Smith, em 1776, uma negociação não necessariamente acarreta o prejuízo de uma das partes, mas beneficia todos os envolvidos. Na venda de um pão, uma pessoa fica com a comida e a outra leva o dinheiro. As duas partes recebem o que querem em uma relação ganha-ganha.

Qual seria, então, a diferença entre uma economia capitalista e uma economia mercantilista ou comunista? 
A economia mercantilista é centralizada, favorece setores ou pessoas com base na razão e no critério do planejador, seja ele um rei, um autocrata ou um comitê central. Como essas pessoas ou órgãos jamais conseguem captar e trabalhar com todas as variáveis de maneira efetiva, isso gera ineficiência e estagnação. A economia capitalista é de livre-mercado, em que o estado se limita a controlar as falhas naturais do mercado, favorece a inovação e a criatividade, gerando renovação e crescimento eficiente. Não é à toa que o liberalismo e sua manifestação econômica, o capitalismo, geraram a maior acumulação de bem-estar na História.

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  1. Enquanto se teoriza o já vivido ,se esquece o que há de novo na política e nas questões sociais .As pessoas comuns trabalham e pagam impostos ,despertadas graças às redes sociais querem apenas a diginidade e o respeito do fruto de seu trabalho que vai diretamente aos pesados impostos , retornar em forma de educação,saúde,segurança e dignidade. Só isso,sem filosofar e citar Foucalt ,o método de justificar o gozo dos beneficiados por dinheiro público: a turma Lulodilma e políticos em geral.

  2. Acabei ontem de ler esse livro e o recomendo a todos os interessados em ampliar os horizontes sobre a América Latina. Excelente!

  3. Recomendo a leitura do livro. Ainda que escrito nos anos 70 e olhando a América Latina colonizada pela Espanha e não a colonização pó Portugal, as ideias do livro são dignas de uma reflexão, mesmo para nós brasileiros. A capa, porém, não faz jus ao conteúdo, que é muito mais profundo e não trata de uma associação socialista de praticantes de esquerda.

  4. Gostei muito da matéria! Parabéns! Certamente, um bom título para leitura e bem alinhado ao que vivemos hoje. Conseguimos (espero) dar uma boa guinada à direita, não apenas no Brasil, mas na América do Sul, o que sinaliza um possível fim ou o enfraquecimento do Foro de São Paulo. Vamos adiante!!

  5. Leonel Brizola, que nunca foi comunista, tem ensaiado voltar à cena, agora amadurecido por poder olhar para o Brasil de ângulo mais amplo, espiritualmente, para dizer que roubar enquanto se promete a felicidade ao povo e levar o País, como Lula e os seus o levaram, é o maior crime que a esquerda poderia ter cometido. Isso sim merece não só a cadeia que é imposta ao chefão e seus ideólogos, Dirceu, por exemplo, mas merece refazer nossas políticas. Avisa aí que o PDT de Brizola tem de renovar-se.

    1. Só Deus nessa causa. Há que se acumular muita fé na providência divina para obter resultado bom de fatores ruins. Amém.

    2. O único partido atual que tem antivírus em sua constituição e filosofia é o NOVO. Os demais, da direita, da esquerda e do centro, estão sempre sujeitos a acolher oportunistas que se disfarçam de estadistas para, em algum momento oportuno, aplicarem um golpe em benefício próprio e de cúmplices.

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