O loteamento de ideias
Sou um advogado que não suporta advogados. Corrigindo: não suporto aquele jeito pomposo que alguns colegas dão à própria postura e escrita. Ora, ora, nobre causídico. Excelência. Data vênia. Um saco. Tenho um amigo que costuma definir o nível de chatice dos advogados perguntando se usam o termo outrossim nas peças jurídicas. Mas tudo isso...
Sou um advogado que não suporta advogados. Corrigindo: não suporto aquele jeito pomposo que alguns colegas dão à própria postura e escrita. Ora, ora, nobre causídico. Excelência. Data vênia. Um saco. Tenho um amigo que costuma definir o nível de chatice dos advogados perguntando se usam o termo outrossim nas peças jurídicas. Mas tudo isso é mais uma anedota do que uma verdade.
O fato é que desse jeito despretensioso e pretensamente simples, escrevo há muito tempo sobre os caminhos e descaminhos de minha atuação em defesa de grandes jornalistas e veículos de comunicação e também de profissionais de imprensa que possuem pouco apoio ou estrutura, enquanto consultor jurídico de associações e ONGs, como a Repórteres sem Fronteiras.
Apenas mais recentemente, em espaços como este, tenho me dedicado a tratar de temas relacionados a Direito e Política. Desde então, passei a ser alcunhado por quem me lê de esquerdista ou conservador, petista ou bolsonarista. Quando não é isso, dizem que fiquei em cima do muro. Claro, alguns passaram a me alcunhar também de coisas impublicáveis. Ganhei muitos haters e alguns bons e gentis admiradores.
A polarização da política não é uma novidade. Mas a coisa é mais profunda. Comecei a reparar que me chamam de bolsonarista ou conservador sempre que defendo de forma plena a liberdade; de petista ou esquerdista sempre que defendo a igualdade ou a inclusão. E passei também, de um tempo para cá, a ser chamado de puxa-saco do Supremo Tribunal Federal (STF) quando proponho a defesa da democracia.
Perceba a gravidade do que ocorreu, caro leitor. Da mesma forma que a coroa portuguesa dividiu o Brasil em capitanias hereditárias, e que a Europa recortou a África na Conferência de Berlim, as ideologias políticas lotearam as ideias do país. Os esquerdistas tomaram para si a bandeira de todo e qualquer tema progressista. Os conservadores, sobretudo os mais alinhados ao governo, tomaram para si a liberdade. E agora os ministros do STF falam como se fossem os únicos a representar a democracia.
Apropriaram-se dos temas que lhes interessavam e convenceram a todos que essa era sua bandeira, legitimando uma espécie de lugar de fala. Um colega jornalista, obviamente de forma brincalhona, costuma dizer que o lugar de fala é a boca. Sem brincadeira, o lugar de fala é a apropriação política de um tema, um loteamento ideológico que permite apenas ao legitimado falar e, aos demais, passivamente ouvirem em silêncio.
Se permitirmos que a liberdade, a pauta progressista e a democracia estejam exclusivamente nas mãos de alguns, enquanto os demais ouvem em silêncio, não sobrará nada para o debate. Terei de me dedicar apenas a escrever data vênia, outrossim, Excelência. Um saco.
André Marsiglia é advogado constitucionalista. Especialista em Direito digital e Liberdades de expressão e imprensa. Consultor jurídico da Repórteres sem Fronteiras. Twitter: marsiglia_andre
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Comentários (10)
Ricardo Machado Rocha
2022-05-15 20:38:06Excelente!
luiz antonio-rj
2022-05-15 15:31:28As 3 vertentes e quem quer lugar de fala devem ser,devidamente, jogadas na privada e, devidamente, darmos a descarga
Elaine
2022-05-15 13:07:59Comentário perfeito ! Aqueles que se julgam legítimos donos dos “lugares de fala” que criam ao seu sabor e talante, pensam que podem nos julgar,enquadradar , rotular e depois no monitorar . Piada pronta . Quem sabe que sabe o que sabe , sempre terá independência , coragem de mudar qdo precisar e as próprias e indelegáveis pautas O resto é blá-blá-blá inconsequente e descartável .
Nilson
2022-05-15 10:41:31O causídico (kkkkk) se esqueceu de comentar sobre aquela toga horrorosa pra passar uma imagem de seriedade e moralidade, uma piada de mal gosto, em pleno século XXI. É preciso fazer um faxinaço em todo o judiciário, a começar pelos adereços, nas formalidades, nos sem números de processos empilhados, nas mordomias, carros com motoristas, combustível, garçom pra cafézinho, garagista, etc.... O que a sociedade quer é celeridade, eficiencia, e juizes imparciais e não ativistas politicos.
Amaury G Feitosa
2022-05-15 09:02:43Realmente aguentar o leriado de advogados e juízes é tarefa de dar azia em sonrisal ... o mogivo é simples antigamente os advogados recebiam honorários por palavras escritas ... haja verbo, advérbio, metáforas e pleonasmos em abundância que ninguém lê ... nem o diabo aguenta.
Edvaldo
2022-05-15 07:41:50Belo texto, colega. Disse de maneira clara e objetiva, que jornalistas e advogados, não necessariamente nesta ordem, nunca tem razão.
Leonardo Fonseca
2022-05-15 07:30:52Prezado, não é só o Senhor que depara com titularidades que nunca ousou apoiar. Apesar de ter votado no Bolsonaro (até contribui via TSE para sua campanha), mas ao apontar seus erros e são muitos sou chamado petista, vermelho e comunista. É assim tanto que deixei de trocar conversas com cegos. Simplesmente falo que o sujeito acabou de conseguir um voto para o corrupto Lula.
NELSON VIDAL GOMES
2022-05-15 02:38:33Parabéns eminente Colega! Grande contribuição! Penso que o primeiro golpe em nossa democracia com sua consequente interferência no processo eleitoral, foi dado pelo STF, que anulou 07 anos de combate à corrupção e lançou Lula às eleições com a "fantasia de mártir", sob a qual padece a nação despossuída e humilhada por suas danosas consequências. Namastê!
Amaury
2022-05-14 21:51:39E o mais triste é que os três grupos citados, que tomaram para si estes "lugares de fala" citados na verdade somente possuem o lugar comum da corrupção, da mentira e da indolência.
Carlos Eduardo De Freitas
2022-05-14 21:43:04Artigo inspirador! Polarização Bolsonaro/Lula e seus desdobramentos são sintomas de doença mais profunda do organismo social.De certo com origem na estagnação decorrente da CF/88, que implicitamente exigiu geração de excedente de recursos acima do potencial da economia brasileira. É preciso,então, mudar a constituição. A "agenda de reformas" caça culpados ,e pune "privilégios", mas jamais tocou no fundo da questão: a inviabilidade econômica intrínseca da Carta de 88. A Polarização é inevitável.