Moraes e Toffoli não são os mocinhos da história
Ministros do STF não podem se deixar cegar pela vontade de combater o que.consideram fake news, sob o risco de não resolver esse problema e criar uma infinidade de outros
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou na quarta-feira, 27, a julgar a possibilidade de as plataformas de rede social serem responsabilizadas pelos conteúdos postados por terceiros em seus domínios, ao contrário do que prevê o Marco Civil da Internet.
O julgamento mal começou, mas os ministros Alexandre de Moraes (foto) e Dias Toffoli, que relata o caso junto com Luiz Fux, fizeram questão de deixar bem claro o que acham e como se enxergam nessa história.
"A autorregulação não funcionou", constatou Moraes, na sessão de quinta-feira, ao jogar a responsabilidade pela depredação do 8 de janeiro de 2023 no colo das redes sociais. "Não venham dizer que isso é ser contra a liberdade de expressão", completou, citando John Stuart Mill, para dizer que o britânico já tinha apontado, no século 19, que há limite para a liberdade de expressão.
Até Tiü França?
A ministra Cármen Lúcia citou o caso de Tiü França, o homem que se explodiu na Praça dos Três Poderes, para reforçar o argumento de Moraes, quando, na verdade, a menção ao caso deveria enfraquecê-lo.
O fato de Francisco Wanderley Luiz ter exposto seu desagrado com o STF em ambiente de debate público deu a possibilidade de alguma autoridade policial identificá-lo antes do cometimento do ato, que, ao que tudo indica, foi cometido sem auxílio.
Moraes constatou, antes mesmo de Toffoli iniciar seu voto como relator — ao mesmo tempo em que dizia que não estava antecipando seu voto —, que "não houve e não vem havendo" empenho das redes sociais para combater aquilo que ele, Moraes, considera que deve ser combatido.
Ele disse isso mesmo depois de representantes das redes apresentarem dados que o desmentiriam, sobre quantidade de publicações derrubadas por suas próprias iniciativas.
Imunidade?
Toffoli falou até em "imunidade" ao destacar o "privilégio de somente ser chamado a responder por um dano quando e se vier a descumprir ordem judicial prévia específica". No fim das contas, o que o ministro quer é a possibilidade de punir as redes por algo que foi dito por um terceiro — ainda que hoje seja muito fácil identificar esse terceiro, como ele mesmo reconheceu.
O ministro deu mais um exemplo que saiu pela culatra quando disse que "se duas pessoas estiverem conversando na última fileira, não vamos reparar". "Se estiverem se esmurrando, nós todos vamos olhar para trás", comparou, para dar a dimensão do que ocorre nas redes.
Nesse caso, o STF deveria ser punido pelas ofensas trocadas entre os dois indivíduos imaginários dentro do tribunal?
Bandidos e mocinhos
Na sequência, Toffoli deixou mais claro a intenção do STF ao julgar a questão neste momento:
"As redes sociais se alimentam, sim, de inverdades, de estímulo ao ódio, de estímulo a todo o tipo de situação ilícita, porque, infelizmente, a maioria das pessoas torcem nos filmes pelo bandido, e não pelo mocinho".
Segundo Toffoli, "aquilo que dá like nas redes sociais não é a verdade, não são as boas ações, não são as redes de ajuda". "Infelizmente, o que dá like, impulsionamento e mais marketing e publicidade e mais ganho, e, ao fim e ao cabo, é business, é de dinheiro que se trata. Não há interesses outros que não o lucro", disse Toffoli.
A consequência última desse raciocínio é a extinção das redes sociais, que parece, no fundo, a vontade de alguns dos ministros do STF.
Os bandidos da história estão claros no discurso de Toffoli, mas o ministro responsável por abrir e entregar a Moraes a relatoria do inquérito das fake news em 2019 não pode ser considerado o mocinho.
Censura e bloqueio
O STF lida muito mal com a desinformação desde que se dispôs a enfrentá-la, há cinco anos.
Além da censura de Crusoé, que deixou uma cicatriz profunda no inquérito das fake news ao punir a publicação de algo que não era mentira, o tribunal foi responsável, pelas mãos de Moraes, por deixar os eleitores brasileiros sem acesso ao X, a principal rede para debate político, durante a eleição municipal deste ano.
Outra prova eloquente da dificuldade dos ministros para lidar com o que consideram fake news foi a checagem divulgada para dizer que o decano Gilmar Mendes e Toffoli são formados em direito, como se essa fosse uma questão que merecesse tamanha atenção.
Não bastasse, parte da estrutura do tribunal foi destacada para desmentir falsidades publicadas nas redes sem qualquer relevância, sem repercussão considerável, e de forma convenientemente seletiva, o que dá uma ideia da obsessão com que esse assunto passou a ser tratado pelo STF.
Amplitude
Enquanto prestam atenção em minúcias, os ministros perdem o quadro geral.
Participaram como amigos da corte no julgamento iniciado nesta semana representantes do Mercado Livre, da Wikipédia e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), entre outros, para lembrar que seus ofícios serão afetados por mudanças de entendimento sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet.
Após essas intervenções, o ministro Luiz Fux chegou a dizer que o julgamento "adquiriu amplitude que não era imaginada".
Liberdade
Essa amplitude só não foi imaginada porque alguns dos ministros do tribunal se deixaram cegar pela vontade de combater fake news a qualquer custo, mesmo que isso resvale na liberdade de expressão — ainda que o neguem sempre que confrontados.
.O julgamento foi interrompido no meio do voto de Toffoli e deve ser retomado na quarta-feira, 4 de dezembro, com o voto de Fux, o outro relator do caso.
Que, até o fim das deliberações, pelo menos alguns dos ministros do STF consigam enxergar o quadro geral, sob o risco de não resolver o problema das fake news e ainda criar uma infinidade de outros.
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