Eleições no México: a pergunta que constrange todos os candidatos e AMLO
México tem mais de 100.000 desaparecidos por políticas das últimas duas décadas
Esta é a 11ª vez que a salvadorenha Blanca Arelí Gómez vem ao México. A 1.500 quilômetros de casa, ela busca pelo seu filho, Roberto. Ele está desaparecido desde 2010, quando tentava imigrar aos Estados Unidos.
Blanca relata a Crusoé as últimas palavras que ouviu de seu filho: “Mamãe, eu vou sair para buscar emprego”. Roberto tinha 19 anos de idade.
Ele queria ajudar no conserto da residência da família, que se arrastava havia uma década. A casa quase colapsou no início de 2001, quando El Salvador sofreu dois terremotos em um mês. Mais de 1.200 pessoas morreram na época.
“Eu lhe falei que não queria que fosse embora, mas o apoiei mesmo assim. Quando os filhos crescem, eles tomam suas decisões. Foi assim... Eu me despedi. E nunca mais pude abraçá-lo”, diz Blanca sob lágrimas.
Desde então, a salvadorenha busca por Roberto. Segundo dados abertos do governo mexicano, compilados pela Comissão Nacional de Busca, Roberto desapareceu no estado de Coahuila, na fronteira com o Texas.
Blanca, que também tem um irmão desaparecido, integra uma organização não governamental em seu país chamada Cofamide, composta por parentes de migrantes desaparecidos.
Os salvadorenhos não estão sozinhos. No México, há ao menos 234 entidades dedicadas à busca de desaparecidos, tanto migrantes quanto locais.
Blanca veio à capital mexicana desta vez para participar da tradicional marcha de 10 de maio, em comemoração ao Dia das Mães.
Centenas participaram do ato na Cidade do México neste ano. As madres buscadoras, “mães buscadoras” em espanhol, lideram o ativismo em nome dos desaparecidos na região.
De acordo com a Comissão Nacional de Busca, há cerca de 105 mil desaparecidos no México. Trata-se de “pessoas cujo paradeiro é desconhecido e se presume, com base em quaisquer provas, que a sua ausência está relacionada com a prática de um crime”.
Com quase o dobro da população mexicana, o Brasil tinha 74 mil registros de desaparecidos em 2022, aponta estudo do Fórum de Segurança Pública que pode incluir sumiços sem relação com nenhum delito. Os desaparecimentos no Brasil são uma estatística que não mobiliza nem centenas de manifestantes todos os anos.
De todos os três candidatos que disputam a Presidência do México nestas eleições de 2 de junho, apenas a candidata da situação apresenta ao menos uma medida concreta para a busca dos desaparecidos.
Chefe de governo da Cidade do México, Claudia Sheinbaum propõe unificar as bases de dados das procuradorias estaduais. A maior parte dos cadáveres não identificados estão sob posse das procuradorias.
A fragmentação dos sistemas de buscas é um problema, de fato. Sheinbaum, entretanto, ignora a corrupção das procuradorias, um dos maiores entraves na busca de desaparecidos. Atualmente, as procuradorias relutam em cooperar na perícia forense.
Cabe também recordar o fracasso do recenseamento de desaparecidos implementado em 2023 pelo padrinho político de Sheinbaum e atual presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, o AMLO. A taxa de desaparecidos encontrados pelo governo caiu três vezes, calculou o jornal El País.
Tanto a situação quanto a principal coalizão opositora, encabeçada pela senadora Xóchitl Gálvez, têm mais motivos para se constranger pelo tema para além da escassez de propostas.
AMLO e seus dois antecessores, ambos de partidos da coalizão de Gálvez, implementaram uma política de Segurança Pública que contribuiu para o aumento das desaparições.
Como a guerra ao narcotráfico impulsionou as desaparições?
Em dezembro de 2006, o então presidente Felipe Calderón, da mesma sigla de Gálvez, determinou o uso das Forças Armadas no combate ao narcotráfico. A chamada “guerra ao narcotráfico” continua até hoje — López Obrador prometeu encerrá-la em sua campanha eleitoral, em 2018.
“A crise dos desaparecidos está intimamente ligada à guerra ao narco. Os primeiros saltos no número de desaparecidos começaram entre 2008 e 2012. Desde então, os índices seguem em alta”, diz a Crusoé a diretora internacional da organização de direitos humanos mexicana Centro Prodh, María Luisa Aguilar.
Dos 105 mil desaparecidos, mais de 90 mil foram registrados nas últimas duas décadas. Apesar de alguns anos de queda, em especial durante a pandemia, o pico de registro de desaparecidos ocorreu em 2023, com cerca de 9.500.
A diretora do Centro Prodh associa as desaparições ao aumento da violência geral desde o início da guerra ao narco. No governo de Calderón, que inaugurou essa política, reverteu-se mais de uma década de tendências de queda nos números de homicídios e de sequestros, dois dos crimes mais associados às desaparições.
Durante seu mandato, entre 2006 e 2012, o México teve o maior aumento na taxa de homicídios em todo o Hemisfério Ocidental. O país ultrapassou o Brasil, em 2018, já na gestão de Enrique Peña Nieto, e chegou ao pico em 2020, com dois anos de governo AMLO.
De acordo com um estudo da Universidade de San Diego, referente a 2020, até 2 em cada 3 homicídios no México estão ligados ao crime organizado.
Quanto aos sequestros, a média anual triplicou nos governos de Calderón e Peña Nieto, comparado à gestão de Vicente Fox, último mandatário antes da guerra ao narco.
O aumento de violência e, logo, das desaparições decorrem da disputa territorial das gangues, inflamada pelo embate direto com as Forças Armadas. Na primeira década de operações militares contra o narco, o número de facções criminosas decolou de seis a 400, aponta a ONG México Unido contra o Crime.
Quanto maior a disputa territorial, maior a necessidade das gangues recorrerem à violência para se impor ou, mesmo, para diversificar as operações — sequestros são um mercado paralelo ao tráfico de drogas que rende de centenas a milhares de dólares por resgate.
Embora o governo que se encerra neste ano tenha reduzido o número de enfrentamentos entre militares e civis, a taxa de letalidade por ação continua estável.
Esse cenário da guerra ao narco é visto também em outros países da América Latina.
Na última década, o Equador deixou de ser um dos lugares mais seguros do continente para se tornar o quarto mais violento, com picos na esteira dos cada vez mais frequentes decretos de estado de emergência.
Em abril, um referendo constitucionalizou o uso das Forças Armadas no combate ao crime organizado no país andino.
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Quão grande é a impunidade?
A guerra ao narco impulsionou as desaparições no México nas últimas duas décadas, mas não é a única causa.
“As desaparições também se explicam pela própria impunidade ao redor. Enquanto não haja nenhuma sanção, os crimes continuarão”, diz María Luisa Aguilar, do Centro Prodh.
De cada 100 crimes cometidos em território mexicano, apenas quatro são investigados, segundo estimativa da organização não governamental México Evalúa de 2023.
A impunidade não toca apenas o narcotráfico. Ela também tem um histórico recente com o Estado e as Forças Armadas.
Embora tenha sido poupado de ditaduras militares na segunda metade do século 20, uma exceção na América Latina, o México passou por um período conhecido como a “Guerra Suja”, entre os anos 1960 e 1980.
Governos civis sustentados em fraudes eleitorais usaram as forças do Estado para reprimir opositores, incluindo através de sequestros. Mais de 900 pessoas desapareceram na época. A diferença de países como a Argentina, nenhum dos crimes do Estado mexicano foram punidos.
Atualmente, a guerra ao narco reprisa atos de infrações aos direitos humanos promovidos e acobertados pelo Estado, que chega até a perseguir organizações de direitos humanos.
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Um desses casos vitimou Christian, então com 19 anos de idade. Ele é um dos quarenta e três estudantes de uma escola na comunidade rural de Ayotzinapa, no estado de Guerrero, sequestrados em 26 de setembro de 2014.
Eles viajavam de ônibus a caminho da Cidade do México, a 320 quilômetros, para participar de um ato contra a violência estudantil. O grupo nunca chegou ao destino.
Investigações de organizações de direitos humanos e de um comitê autônomo criado pela gestão AMLO apontam para participação conjunta do Exército, de polícias locais e do crime organizado no cometimento do crime.
Dezenas de autoridades foram detidas, incluindo um ex-procurador-geral da República. Ao todo, 16 militares chegaram a ser alvo de mandado de prisão preventiva.
Pai de Christian, Clemente Rodríguez Moreno se recorda do sentimento de incompreensão. “Pensávamos que era apenas crime organizado”, diz a Crusoé. O estado de Guerrero tem um histórico centenário de conflito agrário, que envolve também as autoridades públicas.
Rodríguez Moreno é uma das lideranças das famílias dos sequestrados. Representados pelo Centro Prodh, eles têm enfrentado ameaças em sua vizinhança e mesmo tentativas de suborno.
O governo Peña Nieto ofereceu uma compensação que, segundo o pai de Christian, valia até 30 mil pesos por família, o equivalente a 10 mil reais. Na época, o Ministério Público tentou isentar as Forças Armadas do crime, responsabilizando apenas o crime organizado e a polícia local.
“Quem controla o país são os militares. Eles estão em todo o lugar. Eles sabem de tudo, incluindo o que discutimos aqui”, afirma Rodríguez Moreno.
Os familiares dos 43 estudantes e o Centro Prodh afirmam que o governo ainda esconde participação militar no episódio. Segundo eles, 800 documentos sobre o caso continuam confidenciais.
Rodríguez Moreno chegou a se reunir com López Obrador quatro vezes e tem um próximo encontro previsto para 3 de junho, dia seguinte às eleições presidenciais deste ano.
O pai de Christian afirma ter dito a AMLO em sua frente: “Você fracassou como presidente”.
Como é a situação dos migrantes?
A crise humanitária no México é ainda mais grave pelos migrantes, como Roberto, filho de Blanca.
O crime organizado aproveita a vulnerabilidade deles para cobrar pedágios de até milhares de dólares por pessoa. E, mesmo que paguem, alguns migrantes são sequestrados.
“A situação dos migrantes é pior do que a dos mexicanos, porque eles não têm documentação”, diz Ana Lorena Delgadillo, ativista de direitos humanos especializada em infrações contra migrantes.
Essa situação põe sob dúvida qualquer estimativa sobre o número de migrantes desaparecidos, apesar de o governo mexicano ter alegado, uma vez, em 2023, que 2 mil haviam sido sequestrados no ano anterior.
Além dos cativeiros do crime organizado, os migrantes podem acabar desaparecidos em centros de detenção das autoridades mexicanas com documentação falsa.
Em sua busca pelo seu filho ao longo dos últimos anos, Blanca conheceu três salvadorenhos nessa situação. “Encontramos três jovens salvadorenhos de 11 a 15 anos presos em um centro de detenção no sul do México, na fronteira com a Guatemala”, relata a salvadorenha.
Ela contatou as famílias, mas dois dos adolescentes continuam presos. Blanca perdeu o paradeiro do terceiro.
“Como os coiotes os estimulam a usar identidade falsa e se passar por mexicanos, eles continuam presos, com nome e nacionalidade errados”, afirma a salvadorenha.
Em 2023, a Suprema Corte de Justiça do México determinou que a detenção de migrantes estrangeiros por mais de 36 horas é inconstitucional.
Cabe recordar que a política migratória está oficialmente militarizada desde 2022. O Exército e a Força Aérea têm autoridade para inspecionar documentos de migrantes e patrulhar os centros de detenção de migrantes.
Além disso, militares ocupam cargos de gestão no Instituto Nacional de Migração, órgão da política migratória. Dos 32 escritórios do INM responsáveis pelos trâmites migratórios em todo o México, 18 estavam chefiados por militares em 2023.
Apenas um dos três candidatos das eleições presidenciais de 2 de junho tem um projeto concreto para desmilitarizar a política migratória. Trata-se do ex-deputado Jorge Máynez, da terceira via. Ele tem 10% das intenções de votos.
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