Sergio Savarese via Wikimedia Commons

A mágica em “Evidências” não está apenas em suas letras

25.05.24 16:15

Falemos hoje daquela canção que se convencionou chamar de “segundo hino nacional brasileiro”. De uma das músicas favoritas de fãs de sertanejo e, em igual medida, do vocalista da banda punk Ratos de Porão João Gordo. E daquela que, em poucos anos, se converteu no pior pesadelo de seguranças de bares e programadores de caraoquês em todo o país. Sim, passaremos as próximas linhas dissecando “Evidências”, a canção composta por José Augusto e Paulo Sergio Valle em 1989 e convertida em um clássico por Chitãozinho e Xororó no ano seguinte. 

O que faz tantos brasileiros se emocionarem, noite após noite em bares e caraoquês e festinhas caseiras, toda vez que os primeiros acordes da primeira faixa do disco “Cowboy do Asfalto” são sentidos pelo ouvido?

A identificação tem a ver não apenas com a letra, essa dor de cotovelo que todo brasileiro leva consigo — mas sim com a própria estrutura da música, complexa e até certo ponto quase única de tão incomum, que parece torturar o ouvinte até que este exploda em êxtase.

Antes, precisamos avaliar o que “Evidências” não é: uma canção padrão. No cancioneiro ocidental, a fórmula do sucesso é quase inalterada há 80 anos —para representar essas dezenas milhões de faixas lançadas na história da música, vamos usar Ain’t No Mountain Enough, interpretada por Marvin Gaye e Tami Terrell em 1967.

A dupla entrega nesta canção tudo o que manda o manual: uma introdução curta, um verso e eventualmente um pré-refrão, um trecho bem curto onde a música muda um pouco e se aquece para entrar animada no refrão, convencendo quem está ouvindo a cantar. A estrutura se repete, aí uma ligação (que pode ser um solo de guitarra ou um verso numa nova tonalidade) liga ao trecho final, que é o refrão ainda mais animado. Esse “pacote” permite que a canção se resolva em até três minutos, para a alegria das rádios. 

O nosso objeto de estudo de hoje, voluntária ou involuntariamente, subverte toda essa fórmula. A canção segue como o esperado nos seus primeiros 52 segundos, até que a primeira transgressão acontece: toda a tensão que se cria para o refrão (“Eu tenho medo de te dar meu coração/ E confessar que eu estou em suas mãos“) é de repente quebrada: a voz de Xororó hesita, repensa seu esforço (“Mas não posso imaginar o que vai ser de mim/Se te perder um dia”) e, em vez de subir ao refrão, volta à primeira estrofe.  

O público guarda essa frustração na goela e recomeça junto. Há uma tensão não resolvida no ar, que é amplificada pela letra igualmente hesitante (“faço, digo, falo coisas que eu não sou/mas depois eu nego”)…aí, de repente, a música está madura. O cantor parece pronto. O refrão vem aí.   

Nesse ponto, quando os cantores amadores de caraoquê estão prontos para se esgoelar junto ao resto do bar bebendo uma cerveja, somos vítimas da segunda mágica da música: passamos um tempo absurdamente longo nesse vai-e-vem emocional, 104 segundos para sermos mais exatos.  A tensão guardada até esse momento é muito maior que o normal (Marvin e Tami, nosso padrão-ouro, chegam lá em 29 segundos, um quarto do tempo), fazendo que quem cante e quem ouça praticamente implore para que as tensões acumuladas pela música sejam resolvidas.  

Com uma tortura emocional destas, o que se diz pouco importa — o que se quer mesmo é pôr para fora. A letra de “Evidências” é toda muito boa, mas o refrão é tão catártico que consegue se dar ao luxo de ter um segundo refrão (“diz que é verdade/que tem saudade”). Assim, o ápice da música dura superlativos 56 segundos e, menos de um minuto depois, já estamos à beira do segundo refrão, onde a dose exagerada de emoção (e a gritaria nos caraoquês e bares) vai recomeçar.  

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O experimento feito por José Augusto e Paulo Sergio Valle é musicalmente arriscado e nem sempre pode dar certo — a mesma música havia sido gravada um ano antes por Leonardo Sullivan e não fez o menor sucesso, enquanto Zezé Di Camargo também estouraram nas paradas, um ano depois, ao igualmente brincar com as emoções dos ouvintes 

Nenhum exemplo é mais claro dessa deformação estrutural (e dos extremos emocionais que ela leva) que “Tiny Dancer”, uma das mais celebradas composições da parceria entre Elton John e Bernie Taupin. Quando o segundo apareceu com a letra pronta em 1972, o primeiro achou que os dois ficariam melhores versos juntos, no início da canção.  

Com um ritmo que lembra uma lenta balada (a 74 batidas por minuto, caso você se importe), a música parece navegar calmamente entre os versos…mas há rachaduras nessa ideia idílica: os acordes escolhidos por Elton John parecem não se encaixar perfeitamente e a música parece estagnada por algum tempo. A saída encontrada é uma mudança abrupta de tom, onde a voz de Elton John passa a subir mais e mais…e, no último instante antes da consagração, como quem quer apreciar a vista antes de um salto rumo ao desconhecido, a música fica ainda mais lenta, a 70 batimentos por minuto.  

Quando o refrão chega, já se passaram incríveis 154 segundos (a música de Marvin Gaye que usamos como exemplo mais cedo tem, inteira, 151 segundos). Até o próprio Elton John se mostra incapaz de fazer um refrão comportado e começa a se esgoelar, ali mesmo. E você, em casa, com os fones de ouvido, provavelmente vai sentir a mesma vontade. 

Tiny Dancer foi um fracasso comercial devido ao seu tamanho  – com mais de seis minutos, foi inviável para as rádios. Desde seu lançamento, no entanto, foi alçada como uma das mais celebradas do cantor: há registros de ao menos 2.019 execuções em shows dele em 52 anos. Assim como em “Evidências”, os fãs ainda se sentem muito felizes em serem torturados até o refrão.  

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  1. Não sou fã de musica caipira, regional, sertaneja etc., mas algumas, em particular, tenho que reverenciar por terem sido estudadas para compor, e Evidências é uma delas. Hoje sabemos que a música perdeu seu total encanto para ser apenas um produto vendável.

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