A glória miserável de Daniel Silveira
Vez que outra, algum homem sem talento se deixaria levar por delírios de glória e grandeza: Heróstrato,na Grécia Antiga; Daniel Silveira, no Brasil de hoje
Pivô de mais uma crise institucional do governo Bolsonaro, o deputado Daniel Silveira (PTB) é o Heróstrato que o Brasil conseguiu produzir. No século IV a.C., o Heróstrato original conquistou seu modesto lugar na história ao incendiar o templo de Ártemis em Éfeso, cidade grega localizada no que hoje é a Turquia. Ex-PM com longa ficha corrida por indisciplina, Silveira também tornou-se célebre por um ato de destruição, e nem tão espetacular: em 2018, quebrou uma placa de rua em que se havia afixado o nome da vereadora Marielle Franco, assassinada naquele ano. Heróstrato foi punido com a tortura e a morte. Na onda de um movimento populista infestado por apologistas da tortura e da pena de morte, o gesto indecente de Silveira acabou premiado: o brucutu ganhou uma cadeira no Congresso Nacional. Como deputado, ele agora anda botando fogo nas tais instituições democráticas, aquelas que, segundo sempre se repete por aí, continuam funcionando.
“A glória que foi a Grécia / e a grandeza que foi Roma”, dizia Edgar Allan Poe em uma passagem menor de sua poesia. A idealização da Antiguidade Greco-Romana às vezes nos leva a imaginar um largo tempo em que a história conheceu apenas gigantes como Homero e Virgílio, Sócrates e Sêneca, Péricles e Júlio César. Como em qualquer tempo ou lugar, porém, a maioria seria composta de gente comum interessada em cuidar da própria vida, o que já constitui tarefa heróica. Vez que outra, algum homem sem talento se deixaria levar por delírios de glória e grandeza: Heróstrato, sob suplício, admitiu ter cometido o ato incendiário com o objetivo de inscrever seu nome na posteridade. Essa confissão é tudo que nos restou de suas palavras.
Silveira, em contrapartida, fala demais. Na origem do atual imbroglio político, está um vídeo seu do ano passado, que tive a infelicidade ver na íntegra antes que fosse retirado do YouTube por ordem judicial. Estão lá os lugares-comuns bolsonaristas: ataques ao STF e defesa da ditadura e do AI-5. Mais criativo foi o momento em que o deputado compartilhou uma fantasia que tem com o ministro Edson Fachin: “Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra (…) Uma uma surra bem dada com um gato morto até ele miar”. O STF respondeu com a comédia jurídica de costume: ordem de prisão, relaxamento da prisão, tornozeleira eletrônica, até chegar à condenação de Silveira – e então ao lance imprevisto do indulto presidencial.
A fama póstuma de Heróstrato saiu ofuscada pela dia em que ele resolveu botar fogo no templo da deusa caçadora: o 21 de julho de 356 a.C. seria lembrado sobretudo pelo nascimento de Alexandre, o Grande. Mas as autoridades de Éfeso contribuíram involuntariamente para a levar o condenado à posteridade. Proibiram, sob pena de morte, a menção do nome de Heróstrato, medida que teve efeito contrário ao pretendido. A sorte de Silveira foi similar. Na impossibilidade imediata de reverter o indulto conferido por Jair Bolsonaro, o ministro Alexandre de Moraes insiste em manter a tornozeleira do deputado e em multá-lo por descumprir medidas judiciais anteriores. Assim consagrado como herói perseguido, Silveira desfilou, pimpão, pelas manifestações antidemocráticas do Dia do Trabalhador.
No magistral Vidas Imaginárias, o escritor francês Marcel Schwob (1867-1905) retratou Heróstrato como um homem ressentido e dominado por uma delirante “paixão pela glória”. Admirador de Schwob, o autor brasileiro José Francisco Botelho, tradutor de Chaucer e Shakespeare, busca dar voz às frustrações do incendiário em um dos poemas de E Tu Serás um Ermo Novamente (editora Patuá): “Meu nome perdurou, mas só meu nome / retumbante e avulso e sem história”.
O nome de Daniel Silveira perdurará? Talvez, por obra do espírito do tempo. À esquerda e à direita, os novos populismos consagraram versões degradadas da ideia de grandeza e glória – presentes, em tons e intensidades diversas, na mitificação de Simón Bolívar na Venezuela de Chávez e Maduro, no slogan trumpista “make America great again”, e na miragem de uma grande Rússia que anima o expansionismo criminoso de Vladimir Putin. O contexto é propício para que novos heróstratos alcancem alturas inauditas. Alguns já chegaram lá: eis aí o militar que planejou explodir “espoletas” em quartéis e hoje tem autoridade para inscrever o nome de Daniel Silveira em um decreto de indulto.
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Comentários (10)
Mariella Monteiro Dos Santos
2022-05-17 18:53:08Magnífico artigo, Jerônimo!
WILLIAM
2022-05-10 10:06:32Maravilhoso como sempre!
Nildo Jose Formigheri
2022-05-10 09:18:14Lamentável que muitos Deputados saíram em defesa do Daniel Silveira pela imunidade parlamentar, manchando seus currículo politico.
Luiz
2022-05-09 21:51:19Excelente paralelo. O circo é atemporal.
ROMEU
2022-05-09 18:34:15Muita coisa precisa ser mudada no nosso país. Nenhuma democracia sobrevive com instituições fracas. VOTO FAXINA, minha gente! Foco no Congresso Nacional! Vamos tirar o poder das mãos dos corruptos! Sem renovação não há solução!
ADIR
2022-05-09 11:54:19Tempos estranhos, os estúpidos no governo, no congresso.
Suzana Martins
2022-05-09 11:45:01triste de mim ter nas palavras o único refúgio para o lixo continental brasileiro. bela crônica.
MARCOS
2022-05-09 09:52:38De um país com 2 candidatos desse naipe podendo disputar a presidência, com um Gilmar, Tóffoli, Lewandowski e Kássio no STF, e um Aras na PGP (Protetor Geral da Presidência), o que pode-se esperar. Estamos entre a cruz e a espada, qual escolher? Resposta: NENHUMA.
Amaury G Feitosa
2022-05-09 08:38:59O episódio Daniel Silveira serviu apenas para mostrar ao país da ignorância e do ódio a suja guerra revolucionária em curso e adiantado estágio com um poder ditador submetendo o legislativo e tentando impedir o executivo a qualquer preço em favor de una quadrilha que quase levou o pais ao caos e descondenada quer terminar o servićo ... só um milagre impedeirá de viramos a nova Argentina e rápido ... um povo que idolatra ladrões finalmente terá o que merece e insanamente pede ... o lixo.
ALEX ERICKSON
2022-05-08 21:23:58É! Esse é um mundo de contrastes. Difícil de entender! Mesmo assim, é importante de stacar que o Heróstrato teve seu nome preservado na história, mas de forma condenatória. Pode ser que as pessoas querem algo mais contundente e que soe como mais condenatório pra esse famigerado deputado. Vamos observar o que o tempo vai reservar pra ele.