Donald Trump, a pirâmide
O novo presidente não vai instaurar uma ditadura, mas sua eleição por si mesma já representa uma crise séria para a democracia liberal
Donald Trump. Não tenho nada de especial a dizer sobre ele. Alguém tem?
Depois de sua segunda vitória eleitoral, Trump se tornou uma pirâmide: um objeto imenso, sólido e de linhas na verdade bem simples, mas que representa um mistério para o observador.
Como os egípcios antigos fizeram para transportar e erguer essas pedras gigantescas?
Como um mitômano narcisista que quis melar a eleição anterior é eleito pela segunda vez presidente da maior democracia do mundo?
Há respostas bem razoáveis para as duas perguntas, que no entanto não parecem convencer ninguém.
Bolhas de notícias
Ao contrário do que ocorreu em 2016, quando Trump venceu Hillary Clinton no Colégio Eleitoral, os melhores institutos de pesquisas já indicavam que o homem laranja tinha mais chances de vitória do que a mulher negra.
Mesmo assim, o resultado das urnas pegou de surpresa os progressistas que se encerram em suas herméticas bolhas de opinião.
Dessas bolhas, chegam notícias muito parecidas com aquelas que ouvimos na primeira vitória de Trump.
Já tem gente prometendo “resistência" ao futuro governo. Universidades dispensaram alunos e até professores para que possam elaborar o trauma de viver em um país que não elege o candidato ungido pelos iluminados.
As Lisístratas do século 21
A novidade foi a moda que pegou entre algumas mulheres antifascistas: Lisístratas do século 21, elas rasparam o cabelo e fizeram greve de sexo em protesto contra o futuro presidente.
Alguém dirá que o americano médio votou para tirar essa gente esquisita do poder. Mas então Trump indica para o Departamento de Defesa um ex-comentarista da Fox News que foi garoto-propaganda de sabonetes em formato de granada.
A maior máquina de guerra da História nas mãos de um sujeito que tatuou "Deus Vult” no bíceps. País esquisito, os Estados Unidos.
Não, Trump não deveria ter vencido. Só que Kamala Harris não merecia vencer.
Sandices do progressismo histérico
Depois de descartar o incumbente titubeante lá pelos 30 minutos do segundo tempo, o Partido Democrata confiou nas credenciais identitárias de Harris.
Mas o eleitor não viu uma mulher negra: viu a vice-presidente do governo da inflação e da imigração ilegal.
As sandices do progressismo histérico também pesaram. Do cientista político Yascha Mounk ao apresentador de talk show Bill Maher, as vozes razoáveis da esquerda americana estão de acordo sobre esse ponto.
Em dos ótimos monólogos de seu programa, Maher disse que faltou a Kamala um “momento Sister Souljah”.
Referia-se ao discurso em que Bill Clinton, na eleição de 1992, recusou o apoio da cantora Sister Souljah, que havia sugerido que os negros, em resposta à opressão branca, teriam direito de matar brancos.
Clinton não se limitou a criticar as declarações estúpidas de uma rapper de segundo ou terceiro escalão: ele rejeitou enfaticamente a divisão racial na sociedade americana. A divisão que hoje a esquerda identitária promove.
Segregação invertida
Há escolas públicas americanas reinstituindo a segregação, com crianças brancas e negras tendo aulas em salas separadas. A nova cartilha progressista prega, sem qualquer evidência objetiva, que negros aprendem melhor em classes só de negros.
Em vez de um momento Sister Souljah, Kamala preferiu um momento Márcia Tiburi: em desespero no fim da campanha, chamou Trump de fascista.
Compreendo que a maioria dos americanos tenha recusado o kit trans-identitário-decolonial que a nova esquerda do Partido Democrata vendia.
Pacote Trump
Lamento que a única alternativa que eles tenham encontrado na prateleira tenha sido o pacote chauvinista-populista que o Partido Republicano produziu.
Trump nunca teve ou terá seu momento Sister Souljah. Aceita sem pudor o apoio de toda a galeria teratológica da direita radical, do racista David Duke ao conspiracionista profissional Alex Jones.
Não precisa pedir desculpa por nada. Seu eleitor parece relevar ou talvez até admirar esse cinismo.
Em O Aprendiz, excelente filme biográfico que fracassou nas bilheterias (não agradou nenhuma das duas torcidas, o que é um ponto a seu favor), o caviloso Roy Cohn, advogado e mentor de Trump, ensina a ele uma regra cardinal do jogo sujo na política: "Nunca admita nada, negue tudo”.
Em um artigo no Financial Times pouco depois da eleição, o cientista político Francis Fukuyama afirmou que o novo governo de Trump não vai parecer em nada com o primeiro. Será mais ousado e agressivo: “A verdadeira questão, neste momento, não é malignidade de suas intenções, mas antes sua habilidade para efetivamente cumprir o que ele ameaça”.
Fukuyama descarta a possibilidade de Trump instaurar um governo totalitário, mas teme que ele cause um desgaste sério às práticas e instituições democráticas.
O autor de O fim da história e o último homem teme ainda que o protecionismo tarifário prometido por Trump desequilibre o comércio mundial.
E que Trump permita que Putin abocanhe os territórios que já ocupou na Ucrânia. E que, a despeito de todos as críticas que faz a China, Trump possa entrar em um acordo com Xi Jinping, rifando a sorte de Taiwan.
Mas, como o próprio Fukuyama diz, os eleitores escolheram seu presidente sabendo muito bem quem ele é.
Não há nada mais que se possa dizer sobre Donald Trump.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
As opiniões dos colunistas não necessariamente refletem as de Crusoé e O Antagonista
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Comentários (1)
Albino
2024-11-22 07:49:09Ensaio notável!!!