Foto: Alberto Ruy/Secom/TSE

Uma olhada por trás da cortina

Dossiê divulgado por deputados americanos traz decisões sobre redes sociais e liberdade de expressão que o Judiciário brasileiro mantém sob sigilo
19.04.24

Ao longo dos últimos cinco anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) expediram um número desconhecido – mas sem dúvida grande – de ordens para que postagens e perfis inteiros fossem bloqueados nas redes sociais.

Quase todos esses casos são mantidos em sigilo. Mas na noite de quarta-feira, 17, uma comissão da House of Representatives, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, permitiu que se dê uma olhada por trás da cortina.

Os deputados americanos divulgaram páginas de 88 processos que tramitam nas duas cortes brasileiras, em especial sob os cuidados do ministro Alexandre de Moraes. O documento mais antigo é de 16 de agosto de 2021; o mais recente, de 12 de janeiro de 2024.

Com isso, tornou-se possível ter uma ideia mais detalhada de como a guerra para definir as fronteiras entre liberdade de expressão, incitação ao crime e difusão maliciosa de fake news vem sendo travada pelo Judiciário. As notícias do front não são nada boas.

A papelada veio do X, a rede social de Elon Musk. Os deputados americanos expediram uma ordem para que ele entregasse as ordens judiciais recebidas pelo escritório brasileiro de sua empresa, depois do impacto dos Twitter Files – as mensagens internas dos advogados do X sobre seus embates com o STF e o TSE –, das altercações do bilionário com Xandão e da sua inclusão no inquérito das fake news.

Ninguém confessou, mas é improvável que o jogo não tenha sido combinado entre Musk e o presidente da comissão parlamentar americana, o republicano Jim Jordan, com uma ajudinha de deputados brasileiros como Eduardo Bolsonaro. Em meio a dados objetivos, como a lembrança de que Alexandre de Moraes impôs censura a Crusoé por causa de uma reportagem calcada em documentos oficiais do Ministério Público, a introdução do relatório usa o caso brasileiro como alerta para os supostos riscos de erosão da liberdade em um segundo mandato do presidente democrata Joe Biden. 

Mas não importa. Sejam quais forem as intenções da divulgação, os documentos são mais relevantes do que as mensagens dos advogados de Musk. Eles são oficiais e mostram o Judiciário brasileiro em ação.

A maior parte do material contém ordens para que o X derrube contas, mas não aponta os motivos para tanto. Isso parece corroborar uma das histórias dos Twitter Files, segundo a qual a ordem de derrubada da conta de um pastor bolsonarista não foi acompanhada de nenhuma justificativa.

Nesta quinta, contudo, o STF divulgou uma nota dizendo que “todas as decisões tomadas pelo STF são fundamentadas, como prevê a Constituição, e as partes, as pessoas afetadas, têm acesso à fundamentação”. Segundo a Corte, o dossiê americano reproduziu apenas “os ofícios enviados às plataformas para cumprimento da decisão”.

Ainda assim, chama atenção que o prazo para o bloqueio dos perfis e postagens seja em quase todos os casos de apenas duas horas, com multas de até 100 mil reais em caso de descumprimento. Além disso, repete-se a exigência de que o X mantenha as exclusões em sigilo. A primeira medida é draconiana, a segunda, desproporcional. A ordem de sigilo, como observou o advogado André Marsiglia em comentário nas redes sociais nesta quinta, é abusiva, porque “documentos dos autos podem estar sob sigilo, os fatos existentes nos autos, jamais”. O segredo impede que se saiba exatamente quantas contas foram suspensas ou ainda sofrem restrição no Brasil. Os deputados americanos afirmam que poderiam ser até 300.

Muitos dos bloqueios aconteceram no âmbito do TSE. Como a última disputa eleitoral se encerrou há um ano e meio, causa surpresa que esses casos ainda sejam mantidos em segredo de Justiça. Pode-se especular que eles sirvam como prova nos inquéritos das fake news e dos atos democráticos, que tramitam no STF. Assim, ficariam em sigilo para “não atrapalhar” investigações que não acabam nunca e, como já observou Crusoé, vão se tornando a causa de um estado de exceção permanente no Brasil.

Outra hipótese igualmente preocupante é que isso faça parte de um movimento do TSE para estender o seu poder de polícia sobre a internet para além dos períodos eleitorais. O relatório americano contém algumas decisões completas. Uma delas traz a transcrição de um voto do ministro Benedito Gonçalves, segundo o qual conteúdos que “afrontam as regras eleitorais” podem ser suprimidos das redes mesmo depois de encerrado o pleito, porque hoje em dia “o fenômeno eleitoral tende a assumir uma temporalidade contínua, o que justifica o amoldamento do exercício da competência deste tribunal às circunstâncias contemporâneas”.

Se for assim, o TSE se transformará num vigia permanente do discurso político brasileiro. Um órgão especialmente devotado a isso já foi inventado, a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), que vasculhou continuamente as redes sociais em 2022 e alertou os ministros do TSE sobre contas que poderiam atingir “a integridade e a normalidade do processo eleitoral, incentivando, com base em falsas acusações de fraude, a recusa dos resultados e intervenção militar”. Diversas eliminações de perfis tiveram origem nas notificações da AEED.

Vale notar que as regras eleitorais criadas pelo próprio TSE proíbem “a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos” e dão à corte o poder de suspender perfis e também impedir a criação de novos pela mesma pessoa que assim se vê privada, por tempo indeterminado, da possibilidade de falar não apenas sobre política, mas também sobre futebol, novela, bichinhos de estimação ou o que for.

As decisões trazidas à tona também revelam que Alexandre de Moraes e seus colegas não usam parâmetros claros para definir o que constitui de fato incitação a ações criminosas e para diferenciar falas que embutem um risco concreto daquelas que são puro lero-lero.

Há casos que até mesmo as cortes americanas, “absolutistas” em questões de liberdade de expressão, considerariam abusivos. São exemplos disso a divulgação do número de telefone de Alexandre de Moraes, que causou uma enxurrada de ligações ofensivas e ameaçadoras, e a revelação de que o ministro estava hospedado num hotel do Rio de Janeiro em uma data específica. Desde o final da década de 1960, a Suprema Corte dos Estados Unidos considera que coisas desse tipo não são exercícios legítimos da liberdade de expressão. Também lá, as contas que disponibilizaram essas informações poderiam sofrer alguma restrição, embora não necessariamente ser suspensas, como aconteceu no Brasil.

Em contraste, pode-se citar a determinação para que as contas de redes sociais do Partido da Causa Operária (PCO), aquela agremiação nanica de extrema esquerda, fossem bloqueadas.

Entre os posts problemáticos apontados por Moraes encontravam-se estes:

“Tribunal Superior Eleitoral quer impor censura a manifestações políticas em show. Fascista Alexandre de Moraes é um dos pilares da ditadura do Judiciário e vai presidir o TSE nessas eleições. #ForaBolsonaro #LulaPresidente #PCO”,

“O STF e o TSE participaram de todos os momentos cruciais do golpe de Estado contra Dilma e Lula desde 2014. Agora que se aproximam as eleições de 2022 com a ampla preferência popular por Lula, o Judiciário golpista se prepara para mais um golpe.”

Será mesmo que as postagens do PCO incitaram algum comunista a pegar em armas? Será que os admiradores do partido pensaram por um instante em formar uma aliança com o bolsonarismo para destruir o STF? Ou que o bolsonarismo passou a ver como irmãos os radicais barbudos que faziam campanha por Lula? Será que o contexto político tornava mesmo necessário silenciar os posts irrelevantes e francamente ridículos do PCO?

No dossiê, há vários exemplos como esse, em que posts, mesmo quando escritos em linguagem forte, não constituem uma incitação clara a qualquer tipo de ação e por isso não podem ser vistos como um risco concreto para autoridades e instituições. Ao bani-los, a Justiça suprime ideias – que, como se sabe, não desaparecem, mas apenas se escondem no porão quando  reprimidas.

Os deputados americanos prestaram um favor ao Brasil. Mostraram que por trás do sigilo imposto aos processos sobre retirada de conteúdos das redes sociais há ideias muito confusas no STF, que nem sequer chegam perto de constituir uma doutrina coerente sobre aquilo que está e aquilo que não está protegido pelo direito (fundamental) à liberdade de expressão.

As frases preferidas de Alexandre de Moraes, tais como “Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão!” e “Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia!” não substituem critérios objetivos para verificar se um post de internet pode produzir, de fato, perigo no mundo real.

É a discussão aberta, e não o sigilo, que pode pôr alguma ordem nessa bagunça. O sigilo produz apenas incertezas e medo de uma Justiça arbitrária e censória.

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  1. Sejamos sinceros... O problema relacionado ao STF ocorre pelo fato de que quem os indica para lá é o Executivo. As coisas seriam diferentes se a entrada de juízes no STF fossem por mérito, e não escolha de políticos! Brasil é um país complicado... Onde já se viu, Políticos, Juízes, dentre outros aí serem julgados de forma diferente do povo comum? Não poder serem investigados... É tanta coisa errada que a única esperança real é o Reino de Deus.

    1. Comentário perfeito. O STF perdeu toda a credibilidade que possuia, principalmente qdo passou a atuar politicamente. Começou com a mudança da jurisprudência sobre condenação em 2º grau e o entendimento sobre o foro competente para julgar os crimes cometidos por empreiteiras e políticos poderosos. Tal comportamento foi imoral. Simplesmente acabou com o resto de credibilidade que ainda possuia. Hoje é uma corte que só traz insegurança jurídica. Lamentável.

  2. Parafraseando aquele bostéu oportunista rico à custa da lei Rouanet ... ENQUANTO OS HOMENS EXERCEM SEUS PODRES PODERES ditadores avançam sinais vermelhos e perdem os verdes e somos uns boçais ... Brasil, o lixo pôdre do planeta !!!

  3. A elite já decidiu pelo povo (como sempre na nossa história): cabe-lhe ver futebol, discutir fofoca e, de 2 em 2 anos dar a legitimidade que eles querem das urnas, como boa manada. E, claro, o poder e primazia da mentira e manipulação resta apenas no colo da elite, a nunca ser partilhado com os esfarrapados e suas maquinações mesquinhas.

  4. Mesmo com as arbitrariedades do STF, com o Moraes exorbitando em suas funções , não há perspectivas de confronto com o Congresso pra se botar ordem na casa e fazer com que os 3 poderes cumpram só com o estabelecido na Constituição , dado que os 3 poderes se blindam mutuamente até contra investigações de eventuais desvios de conduta

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