A cúpula do poder se reúne para a abertura do ano judiciário no plenário do STF

A vitória da Lava Jato

Os fatos sobrevivem à vitória do sistema, que agora escancara seus escambos e argumentos de ocasião
14.03.24

A Lava Jato completa dez anos no domingo, 17 de março. 

A história da operação tornou-se um campo de batalha. Seus detratores desejam que ela seja vista como uma conspiração de justiceiros com agenda política própria. Ou ainda, nas palavras do ministro Gilmar Mendes, do STF, como “o maior escândalo da história do Judiciário brasileiro” 

Embora tenha prevalecido no plano jurídico, onde boa parte dos efeitos da Lava Jato já foi cancelada, essa versão dos acontecimentos não triunfou. Ela esbarra na percepção que uma parcela majoritária dos brasileiros tem da operação. 

Como mostrou uma pesquisa Genial/Quaest divulgada no começo deste mês, 50% dos brasileiros acreditam que a operação fez mais bem do que mal ao país, contra apenas 28% que pensam o contrário (os demais não souberam ou não quiseram responder). Mais ainda: 74% acreditam que o STF incentiva a corrupção no Brasil ao interferir nos acordos de leniência firmados durante a operação.

O bombardeio permanente pode alterar essa percepção? Talvez. Mas, para isso, teria de lograr ou o esquecimento ou a falsificação das verdades mais elementares que a Lava Jato trouxe à tona. 

A Lava Jato foi investigação e foi processo judicial.  

Como investigação, ela deu concretude às piores suspeitas dos brasileiros sobre o seu sistema político: sua engrenagem era corrupta. Pilhas e pilhas de evidências se acumularam nas muitas fases e desdobramentos da operação – dos contratos com superfaturamento na Petrobras às contas para lavagem de dinheiro mantidas no exterior, das planilhas de propina com apelidos pitorescos aos pedalinhos com nomes de netos de Lula em sítio reformado por duas empreiteiras do petrolão. Empresários, executivos de estatais, políticos e seus partidos se beneficiaram dos bilhões desviados dos cofres públicos. Corrompeu-se o jogo econômico e fraudou-se a democracia. 

Como processo judicial, ela teve uma etapa em que suas teses e procedimentos foram validados em todas as instâncias da Justiça e outra em que as mesmas teses e procedimentos passaram por uma desconstrução sistemática no Supremo Tribunal Federal. 

Há uma frase muito conhecida do senador americano Daniel Patrick Moyniham (1927-2003): “Você tem direito às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos”. Ela se aplica bem às batalhas em torno da Lava Jato.  

Os fatos que ela revelou são incontestáveis. Nem os seus detratores mais contumazes ou pessoalmente interessados têm coragem de negá-los explicitamente. Duas falas recentes, uma de Lula e outra do ministro Gilmar Mendes, exemplificam isso.  

Em pronunciamento durante um evento cultural, o presidente disse que a imprensa deveria pedir desculpas pela cobertura que fez da Lava Jato: “Porque como eles compraram a ideia da Lava Jato do jeito que ela era, não é que não teve erro, pode ter tido erro, mas eles compraram…” E assim por diante.  

Gilmar Mendes deu uma longa entrevista ao jornal Valor Econômico. Ele fez uma única referência à corrupção, da maneira mais vaga e ligeira possível: “As denúncias que comprometiam o PT, o MDB e o PP podiam até ter alguma consistência, mas tinham muita espuma.” (Ele também afirma que depois de atingir aqueles três partidos, a operação decidiu ampliar seus alvos e “pegar também o PSDB”. Gilmar chegou ao supremo pela indicação de Fernando Henrique Cardoso e é próximo de Aécio Neves, tucano atingido em 2017 pela força-tarefa que, antes disso, o ministro dizia ter revelado uma “cleptocracia” nos governos do PT, “o maior escândalo de corrupção do Brasil e quiçá do mundo”.) 

 A retórica é a mesma nos dois casos. Lula e Gilmar Mendes reconhecem que houve crimes, porque negá-los seria ir longe demais. Mas o reconhecimento é amenizado — “pode ter tido erro”, “podiam até ter alguma consistência” — e rapidamente o discurso se volta contra os trabalhos da Lava Jato e contra o caráter de seus protagonistas.   

Essa é a estratégia do esquecimento. Funciona assim: persevere no bombardeio e com o tempo, quem sabe, os fatos que deram origem a tudo — o gigantesco esquema criminoso na Petrobras — deixarão de ser mencionados e sobrará apenas a versão da história que interessa.  

O problema é que os brasileiros sabem que a versão da história que interessa a Lula e a vários ministros do STF está assentada no terreno escorregadio das interpretações jurídicas e das opiniões políticas.

É notório que o STF deu guinadas espetaculares na sua jurisprudência durante a Lava Jato. Fiquemos em alguns exemplos: antes de anular as condenações de Lula por “incompetência” da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar os processos, aplicando o entendimento providencial de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski em outros casos, o ministro Edson Fachin havia decidido de forma contrária em nada menos do que dez ocasiões. O próprio Gilmar havia feito uma defesa enfática dos poderes de Sergio Moro em 2015, chegando a criticar a decisão de seus pares de tirar das mãos do então juiz casos de petistas como Gleisi Hoffmann, depois aliviada por Dias Toffoli, ministro indicado por Lula. Outro episódio diz respeito às idas e vindas do STF sobre a prisão em segunda instância. Na mesma entrevista ao Valor mencionada acima, Gilmar afirmou que decidiu se posicionar contra esse procedimento depois de fazer “uma leitura política” do que acontecia no país.  

Mesmo os diálogos atribuídos a Moro e procuradores da Lava Jato pela Vaza Jato não são provas como aquelas que atestam os desvios de dinheiro da Petrobras. Um relatório da Polícia Federal apontou que não é possível confirmar “a autenticidade e a integridade” das mensagens roubadas por hackers, outro parecer do Ministério Público Federal reiterou que os arquivos digitais “não possuem autenticidade e integridade comprovadas”, mas mesmo assim os diálogos serviram para embasar dezenas de anulações no STF e continuam servindo ao propósito de pintar a Lava Jato como uma conspiração política. Isso acontece porque não estamos no plano dos fatos incontroversos, e sim das interpretações convenientes. É por essa razão que 42% dos brasileiros acreditam que a Lava Jato foi interrompida devido a pressões do mundo político, contra 25% que veem excessos dos investigadores, segundo a pesquisa Genial/Quaest. 

Em 2021, quando o plenário do STF discutia se a anulação das condenações de Lula deveria ser ratificada ou não, o ministro Luis Roberto Barroso, então menos disposto a acomodações do que hoje. fez um resumo preciso do “filme da reação da corrupção”, baseando-se na experiência da Itália e de sua Operação Mãos Limpas. Ele recorre a três mecanismos, segundo Barroso: “Um, mudança na legislação ou na jurisprudência; dois, demonização de procuradores e juízes; e três, tentativa de sequestro da narrativa e de cooptação da imprensa, para mudar os fatos e recontar a história.”

As tentativas de revisionismo e apagamento da história são recorrentes na política. Regimes autoritários fornecem exemplos extremos dessa prática. Na era soviética, Josef Stálin, antecipando as deep fakes, mandava apagar a imagem de seus desafetos — antigos aliados caídos em desgraça — de registros fotográficos. Vladimir Putin, na Rússia atual, recorre a releituras da história distante para dizer que a Ucrânia “não existe” como entidade autônoma e assim legitimar sua invasão do país. Na China, o Partido Comunista liderado por Xi Jinping suprime menções ao massacre da Praça Tianamen, em 1989, ou a atrocidades cometidas por Mao Tsé-Tung onde quer que as encontre. Mas as democracias não são imunes àquilo que o holandês Antoon de Baet, principal teórico desse assunto, chamou de “crimes contra a história”. Onde quer que haja luta pelo poder, haverá tentativa de distorcer ou apagar o passado. A Lava Jato é um dos palcos dessa batalha no Brasil de hoje. É preciso vigilância, com fidelidade aos fatos, para garantir que a memória vença o esquecimento. É o que faz esta edição especial de Crusoé 

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  1. Importante retrospecto, deveria ser liberado para que os assinantes mandassem para os seus amigos. Assim seria atingido um público maior e o Antagonista/Crusoe estaria contribuindo mais para a elevação da consciência política dos brasileiros…

  2. Essas diversas reportagens em comemoração dos 10 anos da Lava Jato lavaram as almas dos brasileiros de bem, que são a maioria aqui no Brasil! Lula praticando as mesmas ações e políticas erradas e corruptas do passado vai voltar pra trás das grades logo logo! Impeachment já!

  3. Parabéns Antagonistas. A verdade não pode ser esquecida. O país teve uma oportunidade de ouro de se reinventar e essa gente a jogou no lixo. Sergio Moro e Dalagnol serão lembrados como Tiradentes, que deu a vida por uma causa.

  4. Um espetáculo de matéria. temos que registrar, para que não se esqueça das mentiras e armações que o sistema judiciário e político narraram neste País. Me lembro da fábula da Verdade e da mentira. A mentira sempre travestida de Verdade. As entidades do bem jamais deixarão acontecer um desequilíbrio grotesco. Tá ai esta matéria da CRUSOÉ, pra embasar essa assertiva. Ao final todos nos iremos, sendo o que vai ficar é essa sujeira que esses caras deixaram nos anais da nossa estória.

    1. Essa é a pura verdade, o stf entre idas e vindas, permitiu essa vergonha para livrar os diversos amigos do amigo!! VERGONHOSO!!!

  5. Importantíssimo manter a lembrança da Lava Jato viva, em contraposição às narrativas do STF ou do PT. A TRANSPARÊNCIA com que a Operação foi conduzida atrapalhou bastante as manobras para deter seus efeitos. Não à toa, o material (obtido de forma criminosa e impossível de ser periciado) da "vaza jato" foi mantido em sigilo por Lewandoviski.

  6. Entendo a ideia do autor, mas discordo em absoluto. Como se dizer que a Lava Jato venceu quando o grande símbolo do Petrolão está no mais alto cargo da República? Ou quando os 2 grandes símbolos da operação sofrem duríssima perseguição política, tendo um já sido punido por legislação fantasma e o outro a ser o próximo da fila? Dizer que a Lava Jato venceu porque a população ainda a apoia e aos seus resultados é muito ralo, afinal desde quando a opinião do povo vale de algo aqui neste país?

  7. Parabéns Sr. Carlos Graieb! Sua reportagem lavou a alma dos brasileiros de bem! O Brasil é Banânia por tantos bananas que possui e por instituições fracas e frágeis. Na verdade, na ética e na moral, Lula deveria estar preso, não deveria ser solto. O mesmo com Bolsonaro. Ter um ex-presidiário condenado por roubo (fora assassinatos de Celso Daniel e testemunhas e Toninho do PT...) Histórias escabrosas acompanham inúmeros personagens, inclusive bandidos de toga...! Viva a Lava Jato!

  8. Corrupção ,favorecimentos políticos e justiça na latrina .QUANDO TEREMOS CONCURSADOS E NÃO NOMEADOS SERVINDO AOS PATRÕES ???

  9. *o CENTRÃO do JUDICIÁRIO: os Exemplos EXECRÁVEIS que uma Sociedade tão CORRUPTA é capaz de produzir! O INROTULÁVEL PURO SANGUE👊

  10. Esta Edição Espacial tem que ser preservada como documento histórico e guia revisionista do processo de reavaliação fática que no futuro deverá ser feito para inserir na história a verdade sobre a conspiração de uma ampla facção do sistema, constituída de políticos, empresários, advogados, juízes, jornalistas e criminosos financeiros e comuns, destinada a anular uma simples operação policial judiciária contra o crime de corrupção organizado e seus facínoras.

    1. A VELHICE FOI PRESENTE QUE A VIDA ME DEU ... entristecidos por ver nossa nação rumando ao lixo e à escravização pelo comuno-bolivarianismo assassino nós idosos temos como consolo a partida para onde estaremos livres da canalhice nacional e podemos ter a eutanásia como opção que prefiro à vergonha de ver meu país sob ditadura de ladrões e criminosos.

    2. Tbm sou outro velho na janela e assino em baixo: muito bem resumida a história.

  11. Cabe à pequena parte da imprensa livre preservar o legado da LJ. Muitos, alegando alguma falhas - como se fosse possível só haver acertos em uma operação inédita e complexa - desqualificam maliciosamente o trabalho da operação, no intuito de proteger criminosos.

  12. Olha só a quantidade de nomes envolvidos em apenas uma reportagem? Quantos e quantos envolvidos (um exército!) de poderosos da política e do STF conseguiram acabar com todas as provas que expõem seus nomes. Sobrou a vingança comandada pelo descondenado e seus asseclas.

  13. Governo, políticos em geral, supremo, tudo vergonha nacional. O supremo, que de supremo só o nome, assim como demais poderes só trabalham em prol dos bandidos e corruptos, o povo que se lasque! Não podemos confiar em ninguém!

    1. Políticos no geral só pensam em encher as cuecas com nosso 💰

  14. Sob claro golpe de estado dado pelo bando PeTralha e tentáculos iniciado no aparelhamento iniciado em 2003 pelo multi criminoso Zé Dirceu que publicamente expôs o golpe à nação e nada foi feito a não ser a destruição da oposição que tentaram assassinar na patuscada de um "psicopata" oficial que apenas adiou a tomada de poder feita pelas urnas indevassáveis do TSE e nas decisões ilegais do STF (todos grandes juristas do país afirmam isto) e assim rumamos ao calvário ... é o Brasil no lixo !!!

  15. Excelente reportagem !! Temos a obrigação de nao deixarmos que corruptos reescrevam a história com base em mentiras !! Os fatos e as provas nao podem ser contestados !! Essa reportagem tem que ser divulgada para as gerações mais jovens para que nao se deixem influenciar por narrativas mentirosas !! Parabéns Crusoe !!

  16. Muito bom. O Gilmar mudou de opinião sobre a Lava Jato após seu padrinho e aliado, o Aécio, ser flagrado em pilantragens. A partir daí a Corte toda passou a trabalhar pela harmonia entre os poderes, blindando corruptos sem o menor pudor. Vergonha

  17. O Brasil, assim como a Rússia, é um país do faz-de-conta, o país da mentira, da fake news. A justiça, aqui e lá, é uma piada de mau gosto, uma troca de favores entre poderosos q ñ querem, por nada, apear do poder. Uma pequena diferença, felizmente, ainda há: por aqui AINDA ñ se mata os adversários na mesma proporção q lá. Lá o povo ainda tem uma razão p/ ñ reagir: o medo. E aqui? A preguiça, a comodidade, o amor entre a bunda e o sofá. Mas ñ se preocupe, chegaremos lá, a Rússia dá o exemplo hj.

    1. Brasileiro é assim mesmo: "...tem um amor entre a bunda e o sofá.." !! Brasil está aí para provar isso!

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