Beto Nociti/BCB

Politicamente protegidos

Por que os órgãos oficiais até hoje não produziram uma lista das chamadas "pessoas politicamente expostas", sobre cujas transações financeiras a fiscalização deveria ser redobrada
31.07.20

O envolvimento de familiares de políticos em casos de corrupção e lavagem de dinheiro é algo recorrente na crônica policial brasileira. Operações recentes, como as que alcançaram a primeira-dama do Rio de Janeiro, Helena Witzel, e a filha do senador José Serra, Verônica, mostram que o caminho do dinheiro não raro passa por parentes de figuras públicas. São muitos os escândalos pretéritos envolvendo pessoas do círculo íntimo de políticos: apurações de malfeitos de familiares do ex-presidente Lula, por exemplo, arrastam-se até hoje na Justiça. Em razão de casos como esses, em janeiro o Banco Central expandiu o conceito de pessoa politicamente exposta, até então restrito a agentes públicos, para incluir familiares de até segundo grau de quem tem mandato – desde vereadores ao presidente da República –, além de ministros, diretores de estatais, servidores com altos cargos comissionados e parte dos integrantes do Judiciário e do Ministério Público.

São várias as implicações dessa classificação, e a principal delas é que, uma vez incluída no rol, a pessoa passa a ser alvo de maior atenção dos bancos nas suas movimentações financeiras. O universo de “pessoas politicamente expostas”, como são chamadas tecnicamente, antes se restringia a cerca de 70 mil nomes e agora pode chegar a 1 milhão. A ampliação dos critérios, porém, esbarra em problema de ordem prática: até agora simplesmente não existe uma base de dados pública informando quem faz parte da lista. A falta de clareza sobre quem é politicamente exposto dificulta as ações de combate à lavagem de dinheiro e onera as empresas privadas que, por lei, são obrigadas a redobrar a atenção sobre seus clientes. Algumas delas, como bancos, são obrigadas a contratar os serviços de firmas especializadas em vender informações e levantamentos para identificar pessoas politicamente expostas e indicar eventuais riscos de negócios e contratações.

A gestão da lista de pessoas politicamente expostas é uma responsabilidade conjunta da Controladoria-Geral da União e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, atualmente sob a responsabilidade do Banco Central. Cabe à CGU consolidar os dados e disponibilizá-los no Portal da Transparência. A tabela publicada hoje no site com informações públicas do governo traz apenas nomes de agentes públicos que ocuparam cargos nos últimos cinco anos, sem menção aos familiares e colaboradores próximos, como agora exige a norma. Indagada sobre a falta de informações atualizadas, a Controladoria-Geral informou que “tem empreendido esforços para adaptação dos seus sistemas para contemplar essas informações”. “A conclusão desse processo de atualização do cadastro, ainda em curso, depende, entretanto, do recebimento de tais informações dos diversos órgãos”, prossegue. O Coaf, por sua vez, minimiza a importância dessa lista que deveria ser pública e acessível a todos. Diz que a previsão legal não significa que ela deva funcionar como “fonte de informação única e suficiente”.

Valter Campanato/Agência BrasilValter Campanato/Agência BrasilO chefe da CGU, Wagner Rosário: dependência de outros órgãos
A classificação das pessoas politicamente expostas, também conhecidas como PEPs, tem que ser observada com atenção especialmente pelos bancos e outras instituições financeiras, obrigados pelo Coaf, por exemplo, a comunicar transações que considerem suspeitas. A falta de uma fonte pública de informação confiável fez surgir um mercado paralelo desses dados. “A ausência de bases públicas abrangentes dificulta a identificação das PEPs e eleva o custo de observância. A cada troca de secretário de um dos municípios do país, nova indicação para cargo de direção e assessoramento superior do governo federal, ou casamento ou separação de uma pessoa politicamente exposta, o banco tem que atualizar sua base e mantê-la por cinco anos”, explica, em nota, a Federação Brasileira de Bancos. “Mesmo tendo suas bases próprias, os bancos também contratam empresas especializadas em base de pessoas expostas politicamente para fazerem checagens e atualizações”, acrescenta a Febraban. A partir de outubro, os bancos terão que fiscalizar o rol ampliado de clientes.

Ainda na iniciativa privada, há outros setores que enfrentam dificuldades com a falta da lista. Por causa da Lei Anticorrupção, médias e grandes empresas têm procurado cada vez mais desenvolver programas de compliance e prevenção à corrupção. Um dos pontos observados na contratação de trabalhadores e executivos, sobretudo em firmas com interesse em fazer negócios com a administração pública, é o fato de um funcionário ser classificado como PEP. Como o conceito oficial retroage a cinco anos, ex-agentes públicos que querem trabalhar na iniciativa privada ganham esse carimbo. “Em algumas empresas, os candidatos são obrigados a fornecer os nomes de familiares de até segundo grau, e essas pessoas são colocadas nas ferramentas de verificação de background check (checagem de antecedentes)”, explica o advogado Luciano Malara, especialista em compliance. Em uma rápida busca em ferramentas de pesquisa na internet, é possível encontrar dezenas de empresas que vendem checagens em listas de pessoas politicamente expostas, para facilitar a verificação do histórico do candidato e se ele é ou tem vínculos com PEPs. Essas pesquisas podem custar de 700 a 3,4 mil reais por CPF, a depender do grau de profundidade da checagem de antecedentes.

A elaboração de uma lista de pessoas politicamente expostas com acesso público é uma das ações previstas pela Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro. Criada em 2003, a chamada Enccla é a principal rede de articulação entre diferentes órgãos para a formulação de políticas públicas e soluções voltadas ao combate a desvios e crimes financeiros. O presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva, lembra que investigações envolvendo parentes de agentes públicos, sobretudo em casos de lavagem de dinheiro e corrupção, são rotina no dia a dia da corporação. “A inclusão dos familiares como pessoas politicamente expostas, em tese, é muito boa. Se essas pessoas são usadas para lavagem, faz todo sentido que elas estejam sujeitas a uma fiscalização maior. Mas, se junto a essas mudanças normativas não vier a estrutura necessária, por meio de pessoal e tecnologia, a lei vira uma espécie de letra morta”, argumenta. “Um banco de dados públicos seria bem positivo”, diz o delegado.

Agência BrasilAgência BrasilNa Receita Federal, o efeito colateral: ser PEP é garantia de tratamento especial
Não se sabe em que medida a demora na elaboração da lista guarda relação com a intenção de proteger as autoridades envolvidas em crimes. É inegável, porém, que em alguns órgãos a preocupação com a mudança na regra vai no sentido oposto. É o caso da Receita Federal, onde o fato de uma pessoa estar no rol das “politicamente expostas” vira um grande empecilho para o trabalho dos fiscais. Para evitar o vazamento de dados de pessoas públicas, é grande a burocracia para que auditores acessem dados desses contribuintes. Sempre que há uma tentativa de acesso, um sinal de alerta acende para os superiores hierárquicos e é preciso justificar a necessidade, sob pena de punição.

Diretor do sindicato que representa a categoria, o auditor fiscal Marchezan Taveira diz que, na Receita, a nova regra que faz a lista saltar para cerca de 1 milhão de pessoas tende a dificultar o trabalho de fiscalização, uma vez que a inclusão no rol cria uma espécie de blindagem especial para esse público. Ele afirma que a legislação que trata de pessoas politicamente expostas no Brasil foi subvertida pelo órgão para “criar uma lista VIP fiscal”. Enquanto em outros países cidadãos considerados expostos têm suas movimentações monitoradas com lupa, no Fisco brasileiro o efeito é contrário.

“Se a Receita incluir no conceito de PEP os familiares de agentes públicos, isso vai restringir demais o trabalho dos auditores fiscais. Muita gente vai acabar blindada. Nos outros países, ser PEP significa que o cidadão tem monitoramento especial. Aqui, acontece o inverso: quem é politicamente exposto acaba incluído numa lista VIP fiscal. É preciso punir vazamentos dolosos e não intimidar servidores com notificações, quando eles esbarram em gente graúda e puxam um novelo em uma investigação”, diz o auditor. É mais uma prova de que, no Brasil, até quando a intenção é positiva o establishment político sempre dá um jeito de se proteger.

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