Flickr/Carlos EbertCancelamento é como macumba: só funciona em quem acredita

Cancelamento, macumba e antifragilidade

Feitiço só funciona em quem acredita
12.07.24

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss num artigo memorável demonstra como a eficácia da magia em sociedades indígenas depende da crença na própria magia. E isso se dá em três aspectos fundamentais: a crença do feiticeiro na eficácia das suas técnicas; a crença do doente que ele cura ou persegue; e a confiança coletiva nesse processo. No caso de um sujeito que é enfeitiçado, ele é intimamente persuadido de que está condenado, e o resultado é que “a integridade física não resiste à dissolução da personalidade social” e ele morre.

Já vi artigos relacionando o artigo de Lévi-Strauss, chamado O Feiticeiro e sua magia, à prática de cancelamento atual. De fato, as semelhanças são bastante impressionantes, se bem que o resultado acaba sendo mais uma morte social, ou a perda de um emprego. E como no caso das sociedades mágicas, acreditar (e se ressentir) é parte do processo para a morte social ou profissional. Vi ao menos um caso que se enquadra perfeitamente nesse padrão: em 2017 o cineasta Marcelo Pedroso lançou o documentário de longa-metragem Por trás da linha de escudos, sobre os embates entre a polícia e os movimentos sociais no Recife, porém mostrando também o lado da polícia, humanizando os policiais. O filme passou em dois festivais – em Cachoeira e Brasília – mas foi mal recebido pela crítica e Marcelo teve uma crise pessoal. Disseram-me que até entrou em depressão. Tirou o filme de circulação. Em 2023, finalmente, lançou uma nova versão do filme, em que faz uma reflexão sobre o original – à maneira de João Moreira Salles em Santiago.

Ele justificou a própria síncope dizendo o seguinte: “Diante do processo histórico que estamos vivendo, nos pareceu impossível continuar veiculando aquele filme”. Nunca imaginei que crítica ou repercussão negativa levasse um cineasta a retirar o filme de circulação e entrar em depressão. Mas me pergunto: e se ele tivesse ignorado solenemente e mantido o filme? Talvez tivesse sido bem recebido em alguns setores, e até tido uma vida profissional mais profícua do que a que aparentemente teve nesses anos. Ele acreditou na macumba feita contra ele – para usar um termo mais brasileiro que magia (se você acha que o termo macumba é pejorativo recomendo ler o que Antonio Risério escreveu sobre o assunto).

É por isso que eu acho que cancelamento é como macumba: só funciona em quem acredita. Só que existem casos concretos de pessoas que perderam o emprego, perderam o acesso a festivais e outras oportunidades profissionais por suas posições, declarações ou obras. Nesse caso o cancelamento é bem real, e a macumba pega. E o medo de cancelamento tem efeito cascata no meio artístico, provoca uma espiral de silêncio – as pessoas temem até coisas simples como usar certas palavras, citar certas pessoas.

Ora, os artistas, assim com as prostitutas, são antifrágeis segundo Nassim Taleb, autor do clássico Antifrágil. No livro ele fala que a fama de muitos artistas se deveram à sua ficha criminal. Um exemplo brasileiro: em 1993 o poeta Bruno Tolentino chegou ao Brasil depois de quase trinta anos na Europa. Chegou deportado, pois havia sido preso e condenado por tráfico de cocaína. Ele nunca ocultou seu passado, até mesmo contou em entrevistas à Globonews e ao Jô Soares – ter sido preso não afetou sua reputação pois veio a ganhar os mais importantes prêmios na sua área existentes no país.

Mas os artistas atualmente têm se mostrado bastante frágeis, no sentido que são muito facilmente canceláveis. Como foi que isso aconteceu? Um filme ou uma obra de arte em geral é um empreendimento (não é só isso, evidentemente, mas é também isso), e este empreendimento pode ser feito por uma empresa ou por uma pessoa, pode dar lucro ou prejuízo. No caso, os artistas foram se acomodando a duas muletas para produzir: o Estado e grandes corporações. De modo que os filmes são feitos com mais facilidade, não há risco nenhum em fazê-los, mas é preciso submeter-se àqueles que controlam o Estado e as grandes corporações – o que aliás é um problema marxista clássico, mas parece que a esquerda o esqueceu.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. Excelente artigo. Parabéns! Irretocável. E mais: graças ao artigo fui conhecer e ler Antônio Risério. Em minha santa ignorância , não o conhecia . Li em seu artigo "Como a ideologia quer moldar a comunicação" a citação sobre a palavra macumba, mas acabei por saborear uma leitura muito mais abrangente, gratificante e esclarecedora. Obrigado.

  2. Será por isso que aquele povo cheio de força e brilho, artistas renomados e famosos, que vociferavam contra fogaréu no cerrado, ataques de garimpeiros e destruição ambiental, estão hoje tão calados, invisíveis? Foram cancelados pelo advento do seu padrinho ou pela vitória da própria macumba eleitoral? A pensar…

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