Adam Schultz/ Casa Branca via FlickrUma imagem (muito real) de Joe Biden: EUA vê gestar, em ano eleitoral, uma farsa política às claras e em tempo real

A candidatura de Joe Biden tornou-se um deep fake

12.07.24

Estacionado em um beco sórdido, o furgão tem as portas de trás escancaradas, expondo sua mercadoria: rifles, metralhadoras, bazucas, lança-foguetes. Ao centro do compartimento de carga, avulta a figura portentosa do vendedor de armas: Kim Jong-Un. No chão do beco, à direita, um comprador estende a mão ao comerciante. É Vladimir Putin.  

A imagem foi publicada no X, antigo Twitter, por meu amigo Leonardo Coutinho, jornalista e autor de Hugo Chávez, o espectro. Ilustrava uma crítica sucinta ao alinhamento do governo brasileiro com duas ditaduras belicistas. Coutinho deixou um aviso no post: “Não deveria ser necessário avisar que a imagem foi gerada por inteligência artificial. Mas… aqui vai. É uma imagem criada por AI. 

De fato, deveria ser óbvio. Ditadores gerenciam o comércio da morte em seus palácios, não em ruelas escuras. O criador da imagem apenas encontrou uma forma criativa de representar a união espúria de Rússia e Coreia do Norte, mais ou menos ao modo dos chargistas tradicionalmente publicados nas páginas de opinião dos jornais (como é próprio do humor gráfico, a imagem até exagerou um tantinho a obesidade de Kim Jong-Un). Mas, como a imagem se parece com uma fotografia, a cautela de Coutinho se justifica. 

Dias depois, eu mesmo quase comprei como verdadeira uma imagem fabricada. Era um vídeo, também publicado na casa de Elon Musk, no qual uma turba de jovens manifestantes americanos vibrava quando uma banner gigante do aiatolá Ali Khamenei era desfraldado sobre a entrada do Museu do Brooklyn, em Nova York. Ora, se em alguns protestos houve gente carregando a foto de Yahya Sinwar, principal planejador do ataque bárbaro a civis isralenses em outubro do ano passado, por que essa turma não aplaudiria também o aiatolá iraniano que financia o Hamas? Mas a inscrição absurda no banner dava a pista de que se tratava de uma sátira: “O Líder Supremo agradece vocês, meninos e meninas americanos”.  

Deep fake é o nome que se dá a essas criações digitais. Há quem se preocupe com seu uso na manipulação do eleitorado, mas, até agora, a internet vem se auto-regulando com eficiência e rapidez. A foto manipulada de Kate Middleton com os filhos e as imagens falsas de Donald Trump cercado de apoiadores negros foram rapidamente desmascaradas. 

Tendo a achar que a inteligência artificial não mudará substancialmente o modo como fabricações, contrafações e distorções circulam no debate público. As imposturas mais eficientes do universo político dispensam ferramentas digitais. Algumas delas são até encampadas por parte considerável dos profissionais que deveriam denunciá-las – os jornalistas. No Brasil, tal é o caso da chamada “restauração da democracia”. 

Neste ano eleitoral nos Estados Unidos, o país está vendo uma farsa política se gestar às claras e em tempo real. Desde o fiasco que protagonizou no debate contra seu adversário no dia 27 de junho, Joe Biden, candidato à reeleição pelo Partido Democrata, converteu-se em um deep fake analógico, tanto mais patético porque ninguém acredita nele. Não haverá como voltar atrás da farsa: se o Partido Democrata optar por outro candidato – não encontrei indicação clara de que o faria até o fechamento deste texto –, só deixará escancarado que mentiu sobre a saúde mental de Biden.   

O pânico se instalou no Partido Democrata, pelo que reporta a imprensa americana, mas mesmo os apelos para que Biden renuncie à candidatura – como aquele feito por Nancy Pelosi há alguns dias – são dominados por eufemismos. A negação da realidade dá a tônica. No X, Barack Obama disse que um mau desempenho em debate não é o fim da linha, que ele mesmo já passou por esse revés e saiu vencedor das urnas. Referia-se decerto a seu desempenho ruim contra Mitt Romney no primeiro debate da campanha de 2012. A comparação não faz sentido: Obama perdeu o debate, mas não perdeu a linha de raciocínio em resmungos incoerentes, como fez Biden no confronto com Trump.   

O jornalismo não se saiu muito melhor do que os medalhões democratas. É comum e perfeitamente admissível que veículos de imprensa estejam alinhados a este ou aquele candidato – só não se admite que neguem a realidade para favorecê-lo. No site Persuasion, o cientista político Yascha Mounk criticou duramente a atitude da grande imprensa americana, que ao longo dos quatro anos de Biden na Casa Branca ignorou os sinais de senilidade do presidente. Em sua visão, o recente editorial do The New York Times pedindo que Biden renuncie à candidatura chegou tarde e chegou fraco. Veio na forma de um “conselho de campanha” aos democratas: Trump é perigoso e por isso o partido deve buscar um candidato mais enérgico para enfrentá-lo. O que faltou ao editorial, afirma Mounk, foi “um reconhecimento das razões substantivas pelas quais os americanos talvez não desejem ser governados, nos próximos quatro anos, por um octagenário mentalmente comprometido cujas faculdades estão visivelmente se deteriorando em ritmo acelerado” 

O texto de Mounk faz dupla a um artigo incisivo de um colaborador regular do Persuasion, Quico Toro. Ele faz uma constatação simples e precisa: ao sustentar, contra escandalosas evidências em contrário, que seu candidato senescente ainda conserva a capacidade cognitiva de governar o país, o Partido Democrata pôs a perder a confiança do eleitor. Toro diz que, pela primeira vez, sentiu “nas entranhas” todo o “cinismo da casta dirigente do Partido Democrata” – e compreendeu porque uma pessoa sensata pode preferir Trump na Casa Branca. 

Entre o pessoal bem pensante da esquerda, Mounk e Toro são exceções. De modo geral, a elite progressista americana, como sua congênere brasileira, acha que só fascistas e pobres diabos manipulados pela mídia votam nos candidatos que eles rejeitam. Perdeu o contato não apenas com o povo, mas com a realidade. 

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Porque não recorrer a Bob Kennedy Júnior, que concorre isolado, mas já é conhecido e querido do povo americano, já ostentando 20% nas pesquisas? Se é por ter pecado e rompido barreiras do bom comportamento social, fronteando Trump talvez seja canonizado…

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