Adriano Machado/CrusoéO ministro Alexandre de Moraes: concentração de poderes

Investigador, acusador, juiz

Como a Vaza Toga pode afetar Alexandre de Moraes e os inquéritos que ele conduz no STF
16.08.24

Relator dos inquéritos sigilosos das fake news e das milícias digitais no STF, o ministro Alexandre de Moraes requisitou relatórios a um órgão com poder policial do TSE, que ele presidia à época, para embasar decisões que pareciam já estar desenhadas, envolvendo medidas duras contra ativistas políticos ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, como quebra de sigilo bancário e apreensão de passaportes.

Empenhados em ocultar o fato de que o ministro, que deveria decidir com base em material colhido por um órgão independente, havia na verdade encomendado os laudos, seus auxiliares simularam um rito processual – chegando inclusive a cogitar a criação de um e-mail com “denúncias” sobre os posts de rede social que descontentavam o chefe.

Os protagonistas dos diálogos são o juiz instrutor Airton Vieira, principal auxiliar de Moraes no STF, e o perito Eduardo Tagliaferro, ex-comandante da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE, um órgão criado para esquadrinhar a internet durante as eleições, mas que vem desempenhando um trabalho de vigilância do discurso político para além dos períodos eleitorais.

O leitor poderá encontrar os detalhes do enredo ao final deste artigo. Mas os parágrafos acima descrevem, em linhas gerais, os fatos mais preocupantes trazidos à tona por um conjunto de mensagens a que o jornal Folha de S. Paulo teve acesso e que deram origem, na terça-feira, 13, ao escândalo batizado pelo Antagonista como Vaza Toga.

Na alta cúpula do Judiciário, o corporativismo já marcou presença. Nos dias que se seguiram à publicação da reportagem da Folha, ministros como Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Flávio Dino não apenas defenderam o caráter e o trabalho de Moraes como também se apressaram em dizer que as mensagens não trazem nada de grave. O próprio Moraes fez defesas enfáticas de sua atuação nos dois tribunais, dizendo que mandou um órgão do TSE reunir  informações para um inquérito criminal do STF, sem seguir nenhuma formalidade, porque “seria equizofrênico oficiar para si mesmo”. Ele também atacou o mensageiro, ou seja, criticou a imprensa tradicional, que teria se rendido à lógica da internet e das redes sociais, e fez uma ameaça velada: se não houver regulamentação específica das redes pelo Congresso, o Judiciário fará esse trabalho de forma “genérica“.

Não há motivo para crer que Moraes vá se declarar suspeito ou impedido em qualquer das ações que tramitam no STF. Também não há sinal de que sofrerá pressão de seus pares. Mas haverá questionamentos tanto no plano jurídico quanto no político.

Na quarta, 14, o partido Novo apresentou uma queixa-crime à Procuradoria Geral da República, PGR, pedindo uma investigação.

O que a gente está pedindo é investigar se houve a prática de dois crimes: falsidade ideológica e associação criminosa”, diz o procurador federal Jonathan Mariano, que trabalha na Advocacia-Geral da União e auxiliou na elaboração da peça do Novo. “O artigo 299 do Código Penal estabelece que é crime inserir informações falsas com o objetivo de alterar a verdade sobre fato jurídico relevante. Nesse caso, o fato jurídico seria o encaminhamento de posts de Moraes para o TSE, pois a revelação disso o deixaria impedido de julgar e ser o relator do inquérito das fake news”, diz Mariano, que também é pré-candidato do Novo a vereador do Rio de Janeiro. “Cabe à Procuradoria-Geral da República apurar isso.”

O enquadramento que o Novo pensa em dar para as ações de Moraes não é consenso entre os especialistas em Direito. “Falsidade ideológica é inserir um dado falsamente com uma finalidade específica. Mas Moraes não fez isso. O que ele fez foi usar um determinado aparato para que fossem incluídas algumas informações. Parece mais um caso de prevaricação do que de falsidade ideológica”, diz o advogado Acacio Miranda, doutor em direito constitucional. Prevaricação é quando um funcionário público utiliza de suas prerrogativas para satisfazer um interesse pessoal. Moraes, assim, pode ser acusado de usar de suas atribuições para prejudicar seus desafetos, os blogueiros bolsonaristas. “No caso da associação criminosa, o delito ocorre quando se unem três ou mais pessoas com a finalidade de cometer crimes. A finalidade nesse caso talvez seja uma ilegalidade, mas não é um crime.”

A possibilidade de que a PGR faça alguma coisa é remota. O procurador-geral Paulo Gonet é figura próxima do ministro Gilmar Mendes e também já saiu em defesa de Moraes. Na quarta, 14, ele afirmou que “houve a abertura de oportunidade para atuação” do Ministério Público nos trabalhos que estavam sendo feitos em parceria entre o STF e o TSE (nas conversas divulgadas pela Folha, não há evidências disso). “Nessas oportunidades, pude verificar as marcas de coragem, diligência, assertividade e retidão nas decisões e no modo de Moraes conduzir os inquéritos”, afirmou Gonet. Ele, portanto, já tem a sua conclusão sobre toda a história e não vê razão para uma investigação.

É certo que os advogados de defesa dos blogueiros irão pedir a anulação dos processos contra seus clientes, dizendo que o juiz estaria organizando as provas e conduzindo a investigação — teria feito o mesmo que cobrar o pênalti e soprar o apito, validando o gol.

O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, também disse a O Antagonista que, com as revelações feitas pelo Folha, pretende solicitar a nulidade de todos os atos e todas as condenações de Bolsonaro na Justiça. Inclusive as duas inelegibilidades do ex-presidente. “Está configurado que houve parcialidade dos processos. O resultado disso é uma completa nulidade”, disse Eduardo.

De fato, a questão toda passa pelo prisma da imparcialidade, princípio fundamental do devido processo legal. “Um juiz imparcial, quando recebe qualquer material, qualquer informação, qualquer dado, deve simplesmente enviar isso ao órgão de acusação pública. Qualquer outro ato pode macular sua imparcialidade. Ele precisa ser equidistante, um espectador do processo que será eventualmente julgado no futuro. O juiz não pode investigar, não pode modular os elementos que recebe, organizá-los”, diz o advogado Alexandre Wunderlich, especialista em direito penal. “As partes implicadas nos casos em concreto podem arguir essa questão. Se isso ocorrer, a PGR terá de opinar em concreto e o STF terá de analisar o caso. Mas pouco se pode fazer se a PGR não enxergar parcialidade na atuação do ministro.”

Na esfera eleitoral, a defesa do ex-presidente ainda se mostra cautelosa. O advogado Tarcísio Vieira, que já foi ministro do TSE, atuou na votação do pedido de cassação da chapa Dilma-Temer, em 2017, e está à frente da defesa de Bolsonaro no TSE, afirmou a Crusoé que é preciso aguardar novas revelações para saber se, de fato, terá a oportunidade de solicitar providências.

A tendência é que os ministros da Corte eleitoral adotem a mesma atitude de seus colegas do STF. “O TSE tem um único objetivo, garantir a lisura, a transparência e a segurança do processo eleitoral. Nós nos comprometemos com isso permanentemente, assim tem sido feito. Aqui, todas as condutas, inclusive dos presidentes, devem ser formais para serem seguras e para garantir a liberdade do eleitor no exercício do seu dever de votar”, disse a ministra Cármen Lúcia, presidente do TSE, na sessão desta quinta-feira, 15.

Líderes do Centrão, tanto da Câmara quanto do Senado, são unânimes em dizer que não vão enveredar em uma cruzada contra o ministro Alexandre de Moraes, justamente por receio do poder que ele acumulou nos últimos anos. Nas palavras de um influente integrante do Centrão essa é uma briga dos Bolsonaros, não nossa. Ainda nessa linha, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já deu diversos sinais de que também não deve dar seguimento a quaisquer pedidos de impeachment de Moraes.

Na quinta, 15, a Folha divulgou novas mensagens mostrando que o policial militar Wellington Macedo, lotado no gabinete de Moraes, também pediu pelo WhatsApp que a AEED, do TSE, investigasse ameaças direcionadas ao ministro e seus familiares. Mas o impacto não foi o mesmo da nova leva de informações.

Segundo apurou Crusoé, a principal consequência da Vaza Toga, neste momento, pode ser o encerramento do inquérito das fake news. A proposta está em fase embrionária e não é consenso entre os magistrados, mas aqueles que a defendem acreditam que poderia ser um gesto relevante para distensionar o ambiente.

As chances de que esse cenário mude viriam de novas revelações ou de uma mobilização maciça de pessoas nas ruas. Há protestos convocados para os dias 25 de agosto e 7 de setembro, mas lideranças bolsonaristas não se arriscam a fazer projeções. Não é certo que a Vaza Toga beneficiará o ex-presidente e seu círculo de apoiadores.

 

Detalhes da Vaza Toga

A reportagem publicada pela Folha de S. Paulo na terça-feira, 13, reproduziu mensagens trocadas entre Airton Vieira, do STF, e Eduardo Tagliaferro, do TSE. Segundo o jornal, elas foram obtidas de um telefone onde estavam armazenadas, “não decorrendo de interceptação ilegal ou acesso hacker”.

A história resumida no inicio deste artigo teve início em 22 de novembro de 2022, quando o ministro Alexandre de Moraes encaminhou a Vieira postagens feitas por um blogueiro, acompanhadas da seguinte ordem: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse para vermos se dá para bloquear e prever multa.”

O pedido foi prontamente encaminhado a Tagliaferro, com o seguinte adendo: “Capriche no relatório, por favor. Rsrsrs”. 

No dia seguinte, 23, Tagliaferro enviou o relatório, atribuindo a origem do material não ao presidente do TSE, mas a “parceiros” do tribunal: “Através de nosso sistema de alertas e monitoramentos realizados por parceiros deste Tribunal, recebemos informações de frequentes postagens […] ofensivas contra as instituições Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral”.

Onze dias depois, em 4 de dezembro de 2022, Tagliaferro confessou sua apreensão com esse procedimento. “Temos que tomar cuidado com essas coisas saindo pelo TSE”, disse ele em mensagem a Marco Antônio Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE. Em seguida, ele cogita da criação de um método de acobertamento: Nem que crie um e-mail para enviar para nós uma denúncia.”

Vargas havia questionado se o “Dr. Airton está te passando coisas no privado?” e chegou a escrever, em tom de piada: “Falha na prova. Vou impugnar”.

A preocupação com a clandestinidade também apareceu em outras mensagens.

“Formalmente, se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito descarada, digamos assim. Como um juiz instrutor do Supremo manda [um pedido] pra alguém lotado no TSE e esse alguém, sem mais nem menos, obedece e manda um relatório, entendeu? Ficaria chato, disse Airton a Tagliaferro em áudio.

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  1. Entendo o rigor da justiça em separar o julgador do acusador. Entendo o risco de esse procedimento degenerar a imparcialidade fundamental da justiça na análise de supostos atos ilegais. Mas ... na prática o que se viu, especialmente na Lava Jato, foi a justiça se valer de provas manifestamente ilegais para "perdoar" réus confessos de atos de corrupção que causaram (ainda causam?) vultosos prejuizos à economia do país, e a reabilitação de políticos corruptos É legal. Mas é justo???

  2. É de enrubescer o mais astuto dos malandros a falta de vontade de ir adiante com a apuração dos fatos. Pior ainda é o silêncio sepulcral dos outros "10 supremos" diante da fedentina que só aumenta. A "Sintonia Suprema" é composta de 11 covardes que se autoprotegem e não tem coragem de cortar na própria carne.

  3. Como podemos notar, não vai acontecer nada. Enquanto não houver independência entre os poderes, a lei não será aplicada. Vivemos em uma democracia falseada. Quem poderia fazer alguma coisa (MPF e Senado), infelizmente não vão fazer nada.

  4. CENSURADO mais de uma vez (absurdo ou medo? se for até entendo) .. assim faço minhas palavras de Cícero no senador romano . "Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós? A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia? Nem o temor do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem a expressão do voto destas pessoas?" --- Catilina morreu em combate tentando derrubar a república .. aqui Catilinas matam sob prisão ilegal.

  5. Aos amigos a lei é interpretada. Aos inimigos, a lei é aplicada. Simples assim. É impressionante como moleques de toga querem fazer cumprir a constituição sem querer submeter-se a ela. Ninguém pode com a verdade.

  6. Muito mimimi. Não vai dar em nada. Se é briga da “família Bolsonaro” e toda “zelite” da nossa república bananeira quer distância do imbróglio, bem que podiam fazer a mesma coisa que cogitaram em relação ao Allan dos Santos de sequestrar em Miami e trazer de volta. Vai Bolsonaro!!! Saia das 4 linhas e deixa de ser bundão

  7. O STF como grande parte de nosso judiciário é uma vergonha nacional. É resultado de um estado moralmente falido. Junto com ele estão as demais estruturas, executivo e legislativo. Mas se seguir analisando vamos encontrar essa doença em vários outros órgãos, como o TCU, TCEs, TCMs, e tantos outros...

  8. Os mesmos juízes que se apressaram em aceitar as mensagens hackeadas que se tornaram pretexto para acabar com a Lava Jato agora não vêem nada de mais nas mensagens do seu colega do Supremo. É muito descaramento

  9. De nada adiantará a FÚRIA VOCIFERANTE, O ÓDIO RECALCADO, REPRIMIDO, ENVENENANTE DO ESPIRITO DE PORCO QUE HABITA EM CADA ADORADOR DO EX-CROTO, contra o Supremo Tribunal Federal guardião da nossa Constituição. Agora o STF conta com DOIS BALUARTES INTRANSPONIVEIS QUE ATUAM EM NOME E NA DEFESA DO QUE CONSTA NA CONSTITUIÇÃO, MINISTROS ALEXANDRE DE MORAES E FLÁVIO DINO ,dupla que causa arrepio nas hostes do infame EX-CROTO !!!

  10. A imprensa nacional sempre tão atenta não cansa de passar atestado de BURRICE provavelmente incentivada pela cultura do bozo nos últimos 04 anos

  11. Essa história ilustra bem o lamaçal em que transformou o STF, uma corta aparelhada pra blindar corruptos e também pra perseguir desafetos

    1. Vamos dar nome ao bois, o STF é uma organização criminosa, destinada a favorecer políticos aliado e suas famílias. Porque a imprensa tem medo de dizer isto?

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