Uma ferida incurável
A barbárie protagonizada pelos terroristas do Hamas é prova viva de que prevalecer ou sucumbir, para os judeus, depende da eterna vigilância

O acidente com o Fokker 100 da TAM (voo 402), em 31 de outubro de 1996, ao decolar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, me impactou sobremaneira. Um irmão, que à época voava com frequência para o Rio de Janeiro, cidade de destino da aeronave, por pouco não se tornou uma das 99 vítimas fatais. Meses depois, um pai que perdeu três filhos na tragédia lamentou: “Lembro-me deles todos os dias. É uma ferida em carne viva que dói 24 horas”.
De maio a novembro de 2021, “fugindo” do nocivo ambiente político e sanitário em curso no Brasil, eu e minha família vivemos em Nova York. A covid-19 foi outro episódio que me abalou profundamente, dessa vez por perdas familiares irreparáveis. Até hoje, a ferida não se fechou. A tal carne viva arde todos os dias.
Durante aquele período conheci pessoas muito interessantes. Ainda que o trauma predominante fosse em relação à pandemia de coronavírus, todas haviam sido impactadas diretamente pelo 11 de setembro de 2001. Ou haviam perdido entes queridos, ou eram bastante próximas de quem perdeu. Igualmente, suas feridas não cicatrizavam. As lágrimas simbólicas do espelho d’água, que escorre ao infinito nos poços que hoje ocupam os espaços das torres gêmeas, no memorial do 9/11, sintetizam a dor dos nova-iorquinos.
De pai para filho
Sou de uma geração de judeus filha de sobreviventes ou de filhos de sobreviventes do Holocausto. O resultado da criação em um ambiente familiar devastado pelo horror nazista é igualmente trágico — obviamente por motivos e em proporções completamente diferentes. A dor das perdas e o pânico pelo genocídio vividos por meus pais e avós ultrapassaram a fronteira dos anos e foram sendo transmitidos de geração em geração.
Se não sofri diretamente os efeitos dos campos de concentração, sofri as consequências psicológicas e emocionais de quem os experimentou, in loco ou por descendência imediata, e me esforço todos os dias para encerrar — e enterrar —, nos meus próprios fantasmas, o trauma dos meus antepassados. Se não quero que minha filha caminhe com tamanho peso sobre os próprios ombros, é minha obrigação fazê-la saber, conhecer, respeitar e honrar suas origens.
E o mesmo se pode e se deve esperar e cobrar dos israelenses — judeus ou não —, vítimas dos atentados brutais de 7 de outubro de 2023. Primeiro, porque um passado ainda muito recente. Segundo, porque a reedição do próprio Holocausto. Terceiro, e tão importante quanto, porque, mais que feridas abertas, a barbárie protagonizada pelos terroristas do Hamas é prova viva de que prevalecer ou sucumbir, para os judeus, depende da eterna vigilância e da necessidade de “erro zero” nessa vigília pela vida.
Identidade e unidade
A empatia é um dos mais nobres sentimentos humanos e um dos que nos diferencia dos animais. Nossa capacidade de entender e sofrer pela dor do próximo é quase ímpar na natureza. Porém, um judeu da diáspora não é meramente empático pelo 7 de outubro. Ele é parte carnal da tragédia. Ele é o pai do bebê decapitado. O companheiro da jovem estuprada. O filho do idoso queimado vivo. A mãe à espera da volta do amor sequestrado.
E não porque os pais ou os avós o fizeram - no caso, me fizeram - sentir assim, mas por ter sido, ainda que à distância, igualmente violado em sua (minha) identidade. O judaísmo não é só uma religião. É o compartilhamento do DNA de um povo que, desde os primórdios, não conhece o sossego existencial. Daí a comunhão real e visceral da dor das vítimas.
Por isso, que jamais se confunda instinto de sobrevivência com vingança. Que jamais se impute a um judeu a mesma sanha de que é vítima histórica. Que jamais se imagine regozijo onde há apenas medo, desespero e dor.
Never again
A busca pela paz cedeu lugar à busca pela própria vida. Negar a um judeu o instinto de sobrevivência comum aos povos é tratá-lo como carne desprezável, ou desprezivel. Se antes de Israel assim era aceitável, ou desejável, ainda que hoje também o seja, não vai acontecer. Na gíria popular: não vai rolar.
Não há como suturar o que não tem borda. O que aconteceu em 7 de outubro de 2023 permanecerá irremediavelmente aberto, em carne viva, e não porque queremos, mas porque precisamos.
Porque ao enterrá-los, não esquecemos nossos mortos. Nós os carregamos em nossas memórias, em nossas homenagens, em nossas orações e em nossos corações. Choramos pelos que se foram e lutamos por quem ficou. Assim prevaleceremos. Am Israel Chai.
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