Quem pensará quando já não pensarmos?
Um estudo da Confederação Internacional de Sociedades de Autor e Compositores (Cisac), publicado no dia 4 de dezembro, prevê que a adoção massiva de ferramentas de inteligência artificial generativa fará com que criadores da indústria fonográfica e audiovisual percam o equivalente a 116 bilhões de reais nos próximos cinco anos. Muita gente tem sido e...
Um estudo da Confederação Internacional de Sociedades de Autor e Compositores (Cisac), publicado no dia 4 de dezembro, prevê que a adoção massiva de ferramentas de inteligência artificial generativa fará com que criadores da indústria fonográfica e audiovisual percam o equivalente a 116 bilhões de reais nos próximos cinco anos.
Muita gente tem sido e será demitida. Muita gente desaparecerá.
Músicos e produtores, escritores, roteiristas, artistas gráficos e tradutores já disputam o que sobra das sobras do mercado não mais com seus pares, mas com seus ímpares artificiais.
Dubladores também. Atores? Estamos quase lá (convenhamos, alguns são indistinguíveis de robôs).
E se chatbots aos poucos vão ocupando o lugar de amigos, cônjuges e terapeutas, quem se surpreenderá com um Jesus feito à imagem e semelhança da nossa IA?
Aqui e ali, grupos e movimentos tentam conter o tsunami algorítmico com as barricadas da boa intenção.
Conseguirão, no máximo, atrasar o processo por meio de processos judiciais que, cedo ou tarde, perderão.
No álbum-manifesto Is this what we want?, Paul McCartney se junta a centenas de outros músicos em “protesto contra a proposta de mudança da lei de direitos autorais proposta pelo governo britânico”.
O ex-beatle compôs a faixa-bônus para a versão em vinil do disco: 2’45” de ruídos.
Mas não é provável que álbuns-manifestos ou cartas abertas, ainda que assinadas por Nick Cave e Billie Eilish, Salman Rushdie ou George R.R. Martin, intimidem a fúria tecno-aceleracionista de neoprofetas como Sam Altman e Elon Musk.
O fim do mundo (de um certo mundo) veio pra ficar.
E o que fazer depois que o mundo acaba?
No atualíssimo ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de 1935, o filósofo alemão Walter Benjamin observa que a possibilidade de se reproduzir tecnicamente as obras artísticas tirava delas o que ele chamou de “aura”, de sua condição de “aqui-e-agora”:
“Mesmo na reprodução mais perfeita uma coisa se perde: o aqui e agora da obra de arte – sua existência única no local em que se encontra. No entanto, é nessa existência única, e somente nela, que está realizada a história à qual a obra de arte esteve submetida no decorrer de sua duração”.
Com o desenvolvimento tecnológico, um quadro, uma apresentação musical, uma atuação teatral podem ser capturados pela tecnologia de gravação, filmagem ou fotografia. Sua apreciação já não depende de sua presença – “a reprodução técnica pode ainda colocar a cópia do original em situações inatingíveis a esse mesmo original. Acima de tudo, ela torna possível levar essa cópia ao encontro do receptor, seja na forma de fotografia, seja na de disco de vinil”.
Benjamin é ambíguo a respeito do que percebe. Identifica no esvaziamento da autenticidade um preenchimento político de sua reprodução.
A arte, deslocada de seu contexto histórico e, a partir de então, “compartilhável”, será usada para fins políticos – ora para manipulação, ora para emancipação. A depender do gosto ou dos poderes do freguês.
Não reproduzimos – ultraprocessamos
Quase um século depois, conseguimos a proeza de não apenas reproduzir tecnicamente a obra de arte, mas dissolvê-la no multiprocessador digital, transformando tudo – do mais sagrado ao mais profano, do mais sofisticado ao mais grosseiro – em dados informacionais. Em números.
Com um prompt bem-feitinho, qualquer um produz sua própria salsicha.
O que há de novo é que, mais do que a perda da aura, da autenticidade, do caráter irrepetível da produção humana, o que se perde é o fator humano.
Com a inteligência artificial, prescindimos da ideia de autoria e, mais do que de autoria, de intencionalidade artística, de comprometimento cognitivo e de responsabilidade ética.
Quem pensará quando já não pensarmos?
Se terceirizarmos a produção intelectual humana – da filosofia à arte, da ciência à religião –, por quanto tempo ainda seremos capazes de compreender, analisar e julgar essa produção?
Haverá um tempo – depois, mas não muito depois de 2026 – em que o uso de anabolizantes tecnológicos atrofiará de vez nossa inteligência? Quem pensará quando já não pensarmos?
O imbróglio me lembra o “Teorema do Macaco Infinito”: em tese, um macaco digitando aleatoriamente em um teclado por um intervalo de tempo infinito irá, quase certamente, criar um texto qualquer escolhido, por exemplo, a obra completa de Shakespeare.
Imaginemos que sim: que um macaco batucando teclas por tempo infinito escreva, por acidente probabilístico, a obra completa de Shakespeare. Essa cópia perfeita da obra de Shakespeare seria a obra de Shakespeare?
Um poema de amor que seja produto de um software feito para autocompletar sentenças continua sendo um poema de amor ou será apenas o resultado – significante sem significado – da combinação probabilística de caracteres que simulam com precisão o que seria um poema de amor?
Gustavo Nogy é escritor
X: @GustavoNogy
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