Marcão Civil da Internet
A Democracia, especialmente a nossa, é assim: uma hora o negócio é de um jeito, outra hora é de outro. Conforme seja ou pareça necessário

A gente aprendeu na escola – bom, “a gente”, os da minha idade, não, mas as novíssimas gerações certamente aprenderão – que a Constituição é a lei maior do país, e se sobrepõe a todas as leis criadas embaixo dela, seja pelo Congresso, seja pelas câmaras estaduais e municipais.
A molecada também vai, ou deveria, aprender que as leis em geral, e a Constituição em particular, são mais ou menos como a Bíblia: dependem muito de interpretação.
É preciso que doutos as leiam e expliquem quando é que “sim” quer dizer “não”, e quando é que “não pode” quer dizer “pode, sim, senhor”. E nem sempre – quase nunca, na verdade – os doutos concordam uns com os outros.
Portanto, as interpretações variam. Prova disso é a profusão de igrejas e entendimentos constitucionais que andam por aí.
Tomemos o caso dessa lei que leva o nome curioso de Marco Civil da Internet. Digo “curioso” porque não entendo muito bem por qual razão é um Marco, e por que é “civil”: haverá algum outro, talvez incivil? Não atino.
A propósito: sendo Marco, com maiúscula, nome de homem, vamos tratá-lo doravante, no espírito de informalidade e malemolência nacional, com samba no pé, por Marcão.
O Marcão foi aprovado em 2014, oportunidade em que já éramos regidos, como parece que o seremos para todo o sempre, saecula saeculorum, pelo partido que ora nos rege.
Bem: em 2014 tava tudo bem com o Marcão. Interpretado pelos doutos à luz da Constituição, achou-se que ele não tinha problema nenhum.
Foi aprovado na maciota, passou tranquilo e louvaminhado como um avanço enorme para pôr ordem na bagunça digital: referência para o mundo, um espetáculo, os quindins de iaiá.
Veio entretanto 2025: mudou a hora, mudaram as necessidades, mudaram alguns dos intérpretes, e está chegada a hora de rever o Marcão.
Segundo foi pedido em dois recursos extraordinários. Aliás, bota extraordinários nisso.
Os recursos questionavam: será que a rapaziada não deu uma cochilada, lá em 2014, e deixou passar umas coisas que talvez não fossem tãããão constitucionais assim?
O pessoal, afinal, é humano. O pessoal se engana, pô. Vivem cheios de serviço, uma hora a cabeça falha. Vamos dar outra espiada no Marcão?
Foram. E não deu outra: acharam problemas no Marcão. Justamente os problemas que os recursos extraordinários pressentiram que havia. Mais precisamente, no artigo 19.
Que diz, segundo o meu entendimento, o seguinte: para punir um site que tenha publicado algum texto ou postagem ofensivo à Democracia, à verdade ou a alguém, é preciso que ele não cumpra a ordem de um juiz para apagar o tal texto.
Entenderam que isso não está bom, e estão debatendo se a Constituição não será melhor atendida se, em vez de ordem judicial, os sites ignorarem as chamadas notificações extrajudiciais.
Que é, basicamente, uma cartinha de um advogado dizendo pro site: tô te avisando, apaga isso aí, senão vai ter.
Ora, eu não sou maluco de dizer que leis não possam ou não devam ser revistas. Tem lei que não funciona mesmo; tem lei que não pega, que não faz o que deve, que prejudica em vez de ajudar.
Não sei se é o caso com o artigo 19 do Marcão. Mas também não sou douto, não formo entre os intérpretes, minhas luzes não dão para esse serviço. Sou, como o leitor, um humilde que sabe: interpreta quem pode e adota o novo entendimento quem tem juízo.
Já quanto ao risco das mudanças constantes de entendimento das leis tornarem as coisas jurídicas, sei lá, meio incertas, meio inseguras, foi explicado pelos doutos que não há risco nenhum: tudo se ajeita.
A Democracia, especialmente a nossa, é assim: uma hora o negócio é de um jeito, outra hora é de outro. Conforme seja ou pareça necessário.
Segundo preleciona o igualmente douto Príncipe de Salina.
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