Hanna Barbera/ReproduçãoA rena pessimista Hardy e seu bordão "ó vida, ó céus": militantes perderão razão de ser caso objetivo seja alcançado

A política do fracasso

26.07.24

Sou um pessimista. 

Acho que sempre fui pessimista. Talvez nunca deixe de ser. 

Não é coisa de que me orgulhe. Não se trata de uma opção filosófica: sou constitutivamente pessimista e não poderia ser diferente. Meu espírito é saturnal; meu humor é envenenado pela bile negra.  

Recentemente, li uma interessante defesa do otimismo na Quillette, excelente revista digital americana. Bem, na verdade, não cheguei propriamente a ler o texto, que só está disponível mediante paywall. A Quillette gentilmente produziu um vídeo, disponível em seu site e no YouTube, no qual uma moça lê o texto em voz alta e clara, acompanhada por imagens que ilustram os argumentos. Foi assim que assisti a “The seven laws of pessimism” (As sete leis do pessimismo), ensaio do belga Maarten Boudry, filósofo da ciência da Universidade de Ghent.  

Na linha do Steven Pinker de Os Anjos Bons da Nossa Natureza, Boudry é um otimista profissional. Esses discípulos tardios de Pangloss amparam seus argumentos em abundantes dados demográficos. Demonstram didaticamente que a porção da humanidade que vive na miséria ou que sofre com guerras nunca foi tão baixa. Tenho minhas reticências com a ênfase na proporção, quando os infelizes do presente excedem os do passado em números absolutos. Mas tudo bem: Boudry vende bem a noção de que vivemos em um admirável mundo novo.  

O ensaio enumera sete razões pelas quais tanta gente (eu inclusive) acha que tudo piora quando na verdade melhoramos um pouquinho a cada dia. São as tais leis do pessimismo de que fala o título. As três primeiras envolvem, de uma forma ou de outra, minha periclitante prática profissional – o jornalismo. Veículos de imprensa, diz Boudry, têm viés negativo: costumam publicar o que é ruim e negligenciar boas novidades. 

Será assim mesmo, sempre? Recentemente, no Brasil, certo noticiário econômico vem afirmando que estamos no melhor dos mundos possíveis, que inflação e carga tributária permanecerão nos patamares atuais, e que é  preciso coibir o alarmismo dos memes… 

Estou brincando, claro: as bobagens da GloboNews são circunstanciais e não servem para refutar o argumento de fundo de Boudry. Gostei em particular da quarta lei do pessimismo – a Lei da Conservação da Indignação, que reza o seguinte: “Não importa quanto o mundo esteja progredindo, a quantidade de indignação permanece constante”. Não encontrei no ensaio publicado pela Quillette uma definição precisa do que seja progresso, e não consigo imaginar que instrumento seria capaz de medir a indignação mundial. Mas a lei é uma boa sacada, e bem plausível. 

Ela tem consequências particulares para o ativismo político. Organizações sociais que combatem determinados males, diz Boudry, tendem a minimizar qualquer avanço na área, pois elas perderão sua raison d’être caso seu objetivo seja alcançado. Para particularizar o argumento: se o mundo zerasse as emissões de carbono, Greta Thunberg teria de voltar para a escola.  

Pensei em expandir esse princípio, aproximando-o da pulsão de morte teorizada por Freud. Então teríamos uma hipótese para explicar a espiral destrutiva em que se enredam os movimentos mais radicais da cena contemporânea. Seus militantes, de forma inconsciente, cultivam o Desejo do Fracasso. 

Tomemos as manifestações contra a guerra em Gaza nas universidades americanas. Haverá entre os manifestantes gente que deseja sinceramente a interrupção da destruição e da mortandade no enclave palestino, mas a mensagem geral que os protestos passaram foi de endosso ao Hamas e de negação dos horrores do 7 de outubro. Essa turma precisa apostar em um movimento terrorista que fecha todas as portas para uma solução de dois Estados, pois só assim terão, em anos futuros, novas oportunidades de faltar às aulas, acampar no campus e hostilizar estudantes judeus. O fracasso perpetua a morte e o sofrimento, que por sua vez preservam as performances da indignação. 

Em campo político muito diferente, encontramos o Desejo do Fracasso também em nossa intentona tonta do 8 de janeiro de 2023. Em determinado momento, parece que a Horda Canarinha confiou no sucesso da empreitada golpista. Imaginou que o quebra-quebra iria levantar o país contra o usurpador esquerdista, devolvendo o poder ao ex-presidente que fugira para a Flórida. Mas alguém poderia mesmo acreditar nessa trama improvável? Bem no fundo de seus delírios, os vândalos deviam ter consciência de que o fim último não era a tomada do poder – cujo lance final eles delegavam às Forças Armadas –, mas a prisão, a vitimização, os lamentos (às vezes procedentes) sobre a má condução do processo legal. Desejavam a derrota, que talvez idealizassem como uma forma de martírio. 

O inspirador da turba é ele mesmo um político cuja ambição maior é o fracasso. Os atritos desnecessários que ele buscava com outros poderes tinham esse sentido. E sua agressividade retórica – bem diferente daquela de seu modelo, o vaidoso e triunfalista Donald Trump – acabava convergindo para a vitimização. Não foi à toa que o próprio Jair Bolsonaro se definiu, em uma reunião ministerial, como um político “escrotizado”.  

O leitor deve achar que forcei a mão para encaixar o tal Desejo do Fracasso na realidade política. E o leitor está certo. Percebo agora que, nos dois exemplos examinados, parti de uma premissa pseudo-psicanalítica: a perseguição de um objetivo inalcançável – a destruição de Israel no caso dos universitários americanos; a derrubada do governo eleito no caso da Horda Canarinha – oculta de forma inconsciente o desejo do fracasso. A ideia tem seu apelo, mas é bem duvidosa. 

A hipótese do Desejo do Fracasso acabou fracassando. Mas posso concluir o texto de forma atipicamente otimista: eu me diverti com ela.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. O Brasil derruba qualquer hipótese de otimismo. O brasileiro, alegre por natureza, se arrasta na miserabilidade sempre que acaba o churrasco, a cerveja ou a partida de futebol. Não precisava ser assim, mas é o país que escolhemos construir. Nesse caso não é ânsia inexplicável pelo martírio, é burrice, irresponsabilidade e negligência mesmo

  2. Muito bom. O vitimismo e cultivo do apocalipse eu nem acho que seja um pessimismo que precisa de razão para existir. É oportunismo pra faturar uns cobres mesmo. Fora isso, nem tem importância se o pessimismo é ruim pra saúde e etc. É que os pessimistas costumam ser uns chatos mesmo.

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