A cadeirada é uma força invencível
O que vimos no debate da TV Cultura parece o fundo do poço, mas gente bem mais qualificada do que Marçal e Datena já sucumbiu ao apelo da baixaria
O barraco, a baixaria, a treta são forças ingovernáveis. Mas olha só que coisa: muitos daqueles que querem nos governar são adeptos do barraco, da baixaria, da treta. Não deixa de ser uma estratégia: afinal, quando esse trio entra na arena política, vem para quebrar tudo. Facilmente leva a melhor sobre a tal "discussão de propostas” que é tão alardeada em campanhas eleitorais. Barraco, baixaria e treta são fins em si mesmos, promessas auto-realizáveis. As propostas, coitadas, em geral são vazias, quando não inexequíveis.
Assunto da semana, imagem definitiva da campanha para a prefeitura de São Paulo, a cadeirada era inevitável. Foi uma consequência necessária da entrada na corrida eleitoral de um candidato que outro dia caracterizei como “contracultural”. Dito assim, parece até que estou afirmando que Pablo Marçal é culpado pela cadeirada que José Luiz Datena lhe desferiu durante um debate televisivo. E é isso mesmo: estou, sim, culpando a vítima – sem, no entanto, desculpar o agressor: acho até que o candidato do PSDB deveria se retirar da disputa.
Não critico a baixaria instalado sobre um pedestal. Sou suscetível ao apelo de um bom barraco: até me arrependi de não ter visto o debate ao vivo. É feio, eu sei, mas tenho de confessar que ri da cadeirada. E de seus frutos na internet: como de costume, os produtores de memes foram rápidos e criativos. Alguém editou o espetáculo contracultural que vimos da TV Cultura para inserir uma cena de Shrek em que uma camponesa grita “a cadeira, usa a cadeira”. Tenho de admirar a presença de espírito e o repertório pop de quem lembra a fala de uma figurante em um desenho animado de 2001.
Esticando um tanto a corda, arrisco afirmar que a baixaria é inevitável na política – que não é, nunca foi o ofício dos puros (políticos que se gabam de sua pureza são os mais perigosos). Debates eleitorais não convidam à conversa elevada. Às vezes até se discutem ideias, mas nunca só ideias: entram também a biografia, o caráter e até a sexualidade dos competidores. Até certo ponto, isso é necessário: em tese, ninguém quer, digamos, um sujeito condenado por fraude bancária na cadeira de prefeito. Mas a fixação na vida privada abre a porta para difamação dos oponentes. E os debatedores nunca perdem a chance de se perder em irrelevâncias e impertinências, discutindo questões políticas que não têm nada a ver com o cargo em disputa (no debate da cadeirada, a candidata do Novo – que é uma espécie de PSOL do bolsonarismo – cobrou de Marçal que ele se posicionasse a favor do impeachment de Alexandre de Moraes).
Os debates eleitorais televisivos são um péssimo modelo para o debate público mais amplo. Não é assim apenas porque bufões cada vez mais espalhafatosos vêm ganhando espaço nas corridas eleitorais: o modelo é ruim, e não parece haver por onde melhorá-lo. Talvez seja assim porque um debate eleitoral não é uma conversa franca entre gente que tem visões discordantes: é uma batalha a ser vencida em busca da vitória definitiva na guerra que é a eleição.
Outro dia, na festa de aniversário de um amigo, entrei em uma discussão – por acaso, com outro colunista de Crusoé – sobre certos temas aborrecidos da política nacional. Soube depois, para minha surpresa, que os outros convivas pensaram que estávamos a ponto de arremessar copos (se não cadeiras) na cara um do outro. Na minha percepção levemente alcoolizada, foi uma conversa intensa mas cordata, e acho que meu opositor concordaria. Nenhum de nós se preocupou em saber quem venceu a noite. O bom debate é uma partida não de tênis, mas de frescobol: o objetivo é manter a bola no ar. Millôr Fernandes disse que o frescobol é o mais belo dos esportes, pois é movido só pelo "espírito lúdico". E arrematou: “Felizmente, não apareceu nenhum idiota pra inventar contagem de pontos no frescobol”.
A ânsia de levar a melhor em uma discussão põe a perder as mentes mais brilhantes. Tome o caso de Gore Vidal e William Buckley Jr., dois respeitáveis intelectuais americanos, o primeiro de esquerda e o segundo de direita. Frequentador da roda dos Kennedy (se bem que Bobby Kennedy não ia com sua cara), Vidal revisou a história de seu país em uma alentada série de romances históricos; amigo de Ronald Reagan, Buckley fundou a revista National Review e ajudou a reconfigurar o conservadorismo americano em seu tempo. Provocadores, vaidosos, ambos eram, diríamos hoje, figuras midiáticas.
Em 1968, a rede ABC convidou os dois para se confrontarem em uma série de programas em torno das prévias eleitorais daquele ano (há um bom documentário sobre esses encontros, Best of Enemies, produzido em 2015). Foi um sucesso, com 10 milhões de espectadores por episódio. No sétimo, o evento do dia foi o violento confronto, em Chicago, entre polícia e manifestantes universitários que protestavam contra a Guerra do Vietnã. Vidal defendeu o direito constitucional ao protesto. Buckley contra-argumentou afirmando que levantar a bandeira vietcongue nos Estados Unidos durante a guerra era um ato de traição, equiparável a marchar pelas ruas com uma suástica durante a Segunda Guerra.
Foi quando Vidal apelou para a baixaria. Disse que a única pessoa pró ou protonazista na área era o próprio Buckley – que, por seu turno, virou a mesa de vez: chamou Vidal de “queer" (hoje abraçada pela militância LGBT, a palavra ainda era homofóbica em 1968) e ameaçou colar o oponente na parede com um soco. A emissora havia programado mais três debates, que obviamente nunca ocorreram.
Não havia respeito moral entre Vidal e Buckley, que viam um ao outro como a encarnação de todos os males que assolavam os Estados Unidos. Claro que a treta dessa dupla antagônica não se compara ao que estamos vendo em São Paulo: até o sexto confronto, desenrolou-se quase sempre em linguagem articulada. Ainda assim, culminou em um lamentável barraco (para quem não sabe, o barraco é a treta em sua versão extrema – ou radical: os sociólogos da GloboNews ainda estão discutindo essas categorias).
Por mais qualificados que sejam os debatedores, quando o objetivo é derrubar o oponente, quem vence é a cadeirada.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
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