Ricardo Stuckert / PRO casal presidencial em visita ao Brasil, em 2023: hipocrisia peronista

O presidente que oprimia a mulher

Ex-presidente argentino Alberto Fernández é alvo de denúncia por violência doméstica
16.08.24

Milhares de mulheres se concentraram na praça em frente ao Congresso da Argentina para o ato do Dia Internacional da Mulher, em 2022. Foi a primeira manifestação do gênero após dois anos de confinamento pela pandemia. Em discurso àquela multidão, o então presidente Alberto Fernández gritou: “Dá vergonha que, na Argentina, uma mulher sofra violência de gênero”. E ainda apelou: “Devemos denunciar os violentos que, só pela condição de gênero, oprimem uma mulher”. Dois anos depois, o ex-presidente é o principal protagonista do caso de violência doméstica que mais tem atraído as atenções na Argentina.

Denunciado pela ex-primeira-dama Fabiola Yáñez, Fernández não se limitou a negar as acusações, que estão sendo investigadas. Ele buscou tirar a credibilidade de Fabiola, de quem se separou no final de 2023. “Se eu sou um agressor, por que ela se submeteu a um tratamento de fertilidade para que tivéssemos um filho?”, disse o ex-presidente. O casal tem um filho, que vive com a mãe na Espanha.

A acusação afirma que os “maus-tratos, assédio, desprezo, ataques e espancamentos acabaram sendo uma constante”. As agressões teriam começado em 2016, antes de Fernández chegar à Presidência, em 2019. A denúncia conta com o registro de uma troca de mensagens entre o casal datada de 2021, durante o mandato de Fernández. O material vazou na imprensa argentina.

Na conversa, a então primeira-dama relata episódios de violência por parte do parceiro. “[Você] vem me golpeando há três dias seguidos”, diz uma das mensagens. Ela também compartilhou uma foto com o olho roxo e outra com um hematoma no braço. Fernández não negou as acusações durante a conversa. Ele apenas alegou mal-estar para desviar do assunto: “Estou com dificuldade para respirar. Por favor, pare. Estou me sentindo muito mal”.

Após a revelação da conversa, Fernández afirmou à imprensa que o olho roxo da ex-esposa seria resultado de “tratamento estético contra rugas”. Em outra entrevista, o ex-presidente admitiu que tinha “discussões” com Yáñez. Entretanto, ele tentou banalizar a agressões: “Nós, como todo casal, discutimos. Umas (discussões) mais veementes e outras menos veementes. Preciso saber do que ela está falando. Com esse critério, eu também poderia dizer a mesma coisa”.

Uma estratégia comum para descredibilizar denúncias de violência de gênero é acusar a vítima de oportunismo. Fernández chegou a afirmar que acredita que “alguém incentivou” Yáñez a denunciá-lo. Mas a suposição não parece proceder. Afinal, não foi a ex-primeira-dama quem chegou à polícia com as evidências das supostas agressões. O material estava no celular de uma ex-secretária de Fernández. O equipamento foi apreendido no âmbito de investigações sobre um esquema de corrupção na contratação de serviços de seguros em órgãos do Estado. Foi o acaso — o azar ou a sorte — que fizeram com que as agressões deixassem o esconderijo do lar para se tornarem públicas.

As autoridades notificaram Yáñez em junho para perguntar se ela queria prestar queixa. Na ocasião, a ex-primeira-dama se recusou a fazê-lo. O jornal argentino Clarín chegou a noticiar o fato em 4 de agosto, sem divulgar as fotos de Yáñez. Dois dias depois, ela veio a protocolar a denúncia na Espanha e a afirmar à Justiça que Fernández a havia chamado por telefone, em ato de “terrorismo psicológico”, para pressioná-la a não denunciá-lo. Ao ampliar a denúncia, no dia 12, a ex-primeira-dama acrescentou a acusação de “violência reprodutiva” — ela afirma que o ex-companheiro a forçou a realizar um aborto.

A procuradoria federal da cidade de Buenos Aires indiciou o ex-presidente por “lesões graves” agravadas por violência doméstica. A pena vai de 4 a 6 anos de prisão. Fernández também foi indiciado por “ameaças constantes”, que podem  somar à pena de seis meses a três anos de reclusão.

Uma das primeiras pessoas a criticar o ex-presidente nesse caso foi a sua ex-vice, a também ex-mandatária Cristina Kirchner. No X, ela escreveu que as fotos de Yáñez ferida “mostram os aspectos mais sórdidos e sombrios da condição humana”. Rompida com Fernández ainda durante o mandato, marcado pelas crises econômica e sanitária, Cristina desta vez está surpreendentemente do lado correto. Quem também prestou solidariedade foi a ex-ministra das Mulheres de Fernández, Ayelén Mazzina. Isso, apesar de ter sido acusada por Fabiola de ter ignorado um pedido de socorro em 2021.

Nenhuma liderança peronista defendeu publicamente Fernández, que veio a renunciar da presidência do Partido Justicialista, a sigla peronista, nesta quinta, 15. A falta de apoio ocorre porque o movimento perdeu sua união interna desde a vitória de Javier Milei nas eleições de novembro. “Os peronistas ficaram muito acostumados com o poder, o que fez com que eles acabassem se afastando do eleitorado”, disse o cientista político argentino Julio Burdman a Crusoé. Sem votos e sem poder, o peronismo perdeu sua coesão. Com isso, Fernández não tem a quem recorrer. Ele agora é um ex-presidente sem aliados em um país onde o feminismo é forte e com uma investigação andando a passos rápidos na Espanha.

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  1. A maior habilidade para um político se dar bem é saber mentir, sem engasgar, sem se esconder, comprar silêncios, enfim: ser mau caráter.

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