Luís Guilherme Fernandes Pereira via Wikimedia commons

A tradição da arte do outro mundo

O Réquiem de Maurice Duruflé é uma obra estranhíssima. Dá a impressão que a partitura foi deixada no Planeta Terra sem grandes explicações
02.08.24

Fui ao concerto da Osesp da semana passada sem conhecer a peça principal que seria tocada, o Réquiem de Maurice Duruflé, sob a regência de Giancarlo Guerrero.

A obra é estranhíssima – o que torna a experiência mais rica (não existe arte sem estranhamento) –, dá a impressão que a partitura foi deixada no Planeta Terra sem grandes explicações.

 

 

No programa do concerto há informações biográficas sobre Duruflé: entre os 10 e os 16 anos ele cantou no coro da Catedral de Rouen – uma das maiores catedrais góticas da França – e lá começou a estudar piano e órgão, especializando-se neste instrumento no Conservatório de Paris. Esse dado me dá a chave para entender o Réquiem: é de uma estranheza medieval.

Uma catedral gótica, diferente de uma igreja barroca (que geralmente fica num pátio), não se situa adequadamente no espaço urbano da cidade (tal como entendemos essa adequação atualmente) – ela geralmente parece ter pousado ali, num lugar qualquer da cidade, sem motivo aparente. Ou que brotou no meio da cidade, sem um plano, e foi crescendo do nada até chegar ao tamanho atual.

O pátio em frente à Catedral de Notre Dame de Paris foi construído modernamente. Antes, a catedral ficava cercada de casas menores e ruas estreitas.

A Catedral de Rouen é assim até hoje. A construção é tão grande, tão desproporcional em relação ao entorno que não é possível ver sua fachada integralmente, a não ser de longe.

O mesmo acontece em relação à Catedral de Chartres: nada nos prepara, andando por ruas estreitas e irregulares, para lidar com a grandeza desproporcional da catedral – desproporcional ainda hoje, 772 anos depois de sacralizada.

O entendimento corrente sobre a Idade Média é de uma época que se espiritualizou por causa do declínio das condições materiais com a invasões bárbaras e a queda do Império Romano.

Não sei se concordo com essa visão. Na Antiguidade, as pessoas eram tão religiosas quanto na Idade Média, e os templos gregos e romanos tinham em comum com as catedrais serem pintados com cores fortes, assim como as estátuas.

A diferença é que o Cristianismo trouxe uma diferenciação substancial. Enquanto o paganismo é imanente, o Cristianismo é transcendente. Ou seja, o paganismo cultua os antepassados no lugar onde foram enterrados ou deuses com formas humanas.

O Cristianismo cultua um Deus onipresente, onisciente e onipotente, que encarnou na Terra, sendo ao mesmo tempo humano e divino, e retornou aos céus.

Tal diferença teve efeitos arquitetônicos. Numa catedral gótica, todos os elementos apontam para o céu, especialmente a flecha. É uma arte voltada para o outro mundo.

Maurice Duruflé – o menino que estudou na catedral – usou no seu Réquiem o cantochão (cuja forma mais conhecida é o canto gregoriano), que é próprio da liturgia católica, porém mesclando com elementos modernos da música. Antes do Réquiem, a Osesp tocou duas peças de outro Maurice francês, o Ravel. Ma Mère l’Oye e Alborada del gracioso, fazendo um programa 100% francês.

No mesmo dia do concerto que aconteceu a abertura das Olimpíadas de Paris. A apresentação, concebida pelo cerimonialista Thomas Jolly, mostrou o deus Dionísio, seminu e pintado de azul, em uma mesa de baquete com representantes de minorias, inclusive uma criança, formando a Santa Ceia tal como concebida por Leonardo da Vinci.

Evidentemente, assim como concebido pelo cerimonialista, houve indignação por parte dos cristãos e uma grande polêmica — os bispos franceses repudiaram a representação. De fato, foi de extremo mau gosto. Em São Paulo, tivemos uma visão mais ampla e substancial da França que aquela representada em Paris. A arte do outro mundo tem se mostrado mais profícua do que a deste.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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    1. Sensacional!!! Parabéns ao autor. Isso é cultura. Aliás parabéns a Crusoé: o corpo de colunistas está maravilhoso.

  1. Ainda que eu aprecie muitas artes, não sou conhecedor profunda para emitir uma opinião sobre Duruflé. Mas, por guardar algumas noções de Estética, entendi que a Abertura das Olimpíadas foi muito grotesca e, também faltou Ética quando quis exaltar o wokismo apenas para "causar".

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