Gilvan de Souza/Flamengo via FlickrE se a segunda bola estivesse na área do Flamengo, qual teria sido a decisão?

Ensaio sobre a cegueira seletiva da torcida

O favorecimento a quem mais reclama, que criou o “apito amigo corintiano” e o "VARmengo", é consequência da má qualidade da arbitragem brasileira
26.07.24

Ocorre quase toda rodada do Campeonato Brasileiro. Uma decisão de arbitragem controversa ou escandalosamente errada beneficia um clube e passa a ser alvo de críticas na imprensa e nas redes sociais. Apenas um grupo aguerrido se posiciona olimpicamente ao lado do juiz responsável pela marcação do pênalti mandrake, como o marcado pelo VAR para o Corinthians na última partida contra o Grêmio, em Itaquera, ou da expulsão exagerada: a torcida do time beneficiado pela lambança.

Esses torcedores não estão interessados em defender o árbitro, evidentemente. Eles tentam blindar o próprio clube das acusações de favorecimento. O último exemplo mais expressivo disso ocorreu no jogo entre Flamengo e Criciúma, disputado em Brasília.

Um torcedor jogou uma bola para dentro de campo enquanto a partida estava rolando. A segunda bola ficou dentro da área do Criciúma enquanto o ataque do Flamengo avançava para a meta adversária. O defensor Barreto chutou a segunda bola na outra, desarmando Cebolinha, que se dirigia em direção ao gol.

O árbitro Pablo Ramon Gonçalves Pinheiro não titubeou em marcar pênalti, baseado na regra que proíbe “arremessar um objeto na direção da bola, de um adversário ou de um membro da equipe de arbitragem, ou tocar na bola com um objeto”. Mas a segunda bola não deveria estar ali.

Na mesma rodada do Brasileirão, o jogo entre Palmeiras e Cruzeiro foi interrompido para a retirada de balões de dentro de campo. Na disputa entre São Paulo e Juventude, o árbitro parou a partida para a retirada de rolos de papel higiênico arremessados pela torcida tricolor.

O árbitro de Flamengo e Criciúma tinha, portanto, ao menos duas opções no lance da segunda bola em campo: marcar o pênalti, como fez, ou interromper a partida para retirar a bola e evitar que algo como um pênalti viesse a ser marcado por causa da presença da segunda pelota.

O juiz escolheu a primeira opção, para a felicidade da torcida rubro-negra, mas a incômoda pergunta se impõe: e se a segunda bola estivesse na área do Flamengo, qual teria sido a decisão? É a questão que incomoda os flamenguistas, e o cerne de todo esse debate.

“Os gritos tinham diminuído, agora ouviam-se ruídos confusos no átrio, eram os cegos, trazidos em rebanho, que esbarravam uns nos outros, comprimiam-se no vão das portas, uns poucos perderam o sentido e foram parar a outras camaratas, mas a maioria, aos tropeções, agarrados em cachos ou disparados um a um, agitando aflitivamente as mãos em jeito de quem está a afogar-se, entraram na camarata em turbilhão, como se viessem a ser empurrados de fora por uma máquina arroladora. Uns quantos caíram, foram pisados”, relata Saramago no Ensaio Sobre a Cegueira, ao descrever a chegada ao manicômio da segunda leva de cegos acometidos inexplicavelmente pelo “mal branco”.

É como chegam às redes sociais os torcedores dos clubes beneficiados pelas controvérsias da arbitragem, com a diferença de que não perceberam a própria cegueira. Acontece mais com o Flamengo e o Corinthians, por motivos óbvios: têm torcidas maiores e, consequentemente, tendem a ser mais beneficiados pela arbitragem.

Não se trata de um favorecimento deliberado ou mal intencionado, como costumam alegar os torcedores adversários. Não é “roubo”, é imposição. Um erro contra o Flamengo ou o Corinthians sempre será maior do que contra o Criciúma ou o Vitória. É um benefício de ser gigante. O malefício é a desconfiança que leva flamenguistas e corintianos a se digladiarem nas redes sociais com adversários sempre que seus times são favorecidos.

O mesmo vale para contextos regionais. Errar contra o Cruzeiro terá mais consequências do que prejudicar o Democrata de Sete Lagoas, e a mesma lógica se aplica a uma partida entre Sport Recife e Central de Caruaru. Na dúvida entre a aplicação de duas regras possíveis, quem o árbitro vai escolher prejudicar?

Recentemente, o técnico Abel Ferreira equilibrou um pouco as coisas com Flamengo e Corinthians, tornado mais oneroso aos árbitros, por meio de pressão ostensiva à beira do gramado, tomar decisões contra o Palmeiras. O dono do Botafogo, John Textor, parece mirar o mesmo com suas denúncias vazias sobre manipulação de resultados.

O argentino Luis Zubeldia também parece estar conseguindo resultados com suas reclamações à beira do campo (e às vezes até dentro de campo). O São Paulo, muito prejudicado nos últimos anos por decisões de arbitragem, ganhou um pênalti contra o Bragantino e teve um gol sofrido contra o Juventude anulado com muita boa vontade do VAR.

O favorecimento a quem mais reclama é consequência da má qualidade da arbitragem nacional. Expressões já consagradas como o “apito amigo corintiano” e o “VARmengo” só vão sumir quando os árbitros forem seguros o bastante para não ceder a pressões.

Isso também depende das torcidas e de sua tolerância com eventuais benefícios tortos. “Costuma-se até dizer que não há cegueiras, mas cegos, quando a experiência dos tempos não tem feito outra coisas que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras”, escreveu Saramago. É preciso abrir os olhos.

Rodolfo Borges é jornalista 

 

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  1. A falta de padronização na interpretação da regra está mais acentuada nas decisões do VAR, lançando uma sombra gigante sobre a lisura da competição. A crescente prática de apostas estariam influenciando este comportamento da arbitragem?

  2. A arbitragem é ruim a CBF é incompetente e opaca e a mídia só repercute erros contra os seus queridos. É uma combinação explosiva para ajudar a termos a várzea de campeonatos que temos.

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