ReproduçãoAnna Taylor-Joy como Furiosa: produção encorpou o substrato mítico do mundo de Miller.

Mad Max now

"Furiosa", novo filme da série de George Miller, não é uma profecia sobre catástrofes futuras, mas um retrato de nosso presente vazio
14.06.24

Energia, alimento, armamento: a economia reduzida às necessidades básicas. Há uma cidadela que refina gasolina e diesel, outra que fornece água e vegetais, e uma terceira que produz armas e balas.

A divisão do trabalho é assim, estreita e radical, no mundo criado por George Miller em Furiosa: Uma saga Mad Max, que vi com inesperado prazer no domingo, 9. É um filme de ação em que carros, caminhões e motos são destruídos e destroçados de todas as formas imagináveis. Sob o ronco dos motores se ouve o gemido com que o mundo acaba. 

A história se passa no deserto australiano, em um futuro apocalíptico no qual tudo é deserto (no original, wasteland). A natureza da catástrofe que produziu essa terra árida e violenta não é muito clara. Neste filme e nos quatro anteriores da série, aventam-se desastres ambientais e uma guerra – nuclear, ao que tudo indica – causada pela disputa por petróleo (o Mad Max original, com Mel Gibson, é de 1979, ano em que a Revolução Islâmica no Irã provocou a segunda crise do petróleo da década). Mas é tudo muito vago e impreciso. Interessa apenas saber o que restou do mundo: cidades esparsas, estradas, bandos de saqueadores.

As três cidadelas já eram mencionadas em Mad Max: estrada da fúria (2015), filme anterior da série (de que gostei menos, mas acho que sou exceção entre os espectadores). Em Furiosa – cuja ação, todos já devem saber, se passa anos antes de Estrada da fúria – as consequências inevitáveis dessa super-especialização são exploradas até sua consequência inevitável: a guerra. Dementus (Chris Hemsworth), líder de um uma gangue de motoqueiros que se apodera do petróleo, tentará conquistar também as outras duas cidadelas.

É curioso que, nessa divisão da wasteland por setor econômico, Miller não tenha aberto lugar para seu próprio ofício. Poderia existir uma cidade do entretenimento, dedicada ao entretenimento, com cabarés, cinemas, bares, bordéis. No terceiro e último filme com Gibson no papel-título, Além da cúpula do trovão (1985), há uma cena em uma espécie de arena de gladiadores, que decerto cumpriria a função de divertir as massas famélicas. Considero esse o pior dos cinco Mad Max (e neste ponto acredito estar com a maioria dos espectadores), pois a estrada, verdadeira arena desse mundo devastado, acaba ficando em segundo plano. 

Antes de assistir a Furiosa, revi os dois primeiros filmes (lamento, Tina Turner: dispensei Além da cúpula do trovão). Até que envelheceram bem. O segundo ainda é o meu favorito. As sequências de ação aprimoraram-se muito nas produções deste século, mas a precariedade de Mad Max 2 (1981) torna aquele mundo mais sujo e brutal. Na perseguição final, sentimos o aço dos veículos destruídos rasgando a carne frágil de seus ocupantes.

Furiosa, em compensação, encorpou o substrato mítico do mundo de Miller. A cena inicial traz ecos edênicos: em um bosque, Furiosa, ainda criança (vivida por Alyla Browne), está colhendo uma fruta no alto de uma árvore quando percebe a serpente do paraíso: motoqueiros da gangue de Dementus estão por perto. Ela será levada por eles, e esse rapto dá início à trama. 

Como no primeiro Mad Max, a vingança está no centro do enredo. Vivida na idade adulta por Anya Taylor-Joy, Furiosa tem contas a acertar com Dementus. Depois que ela é levada do oásis verdejante onde viveu na infância, o Gênesis é substituído pela Ilíada. Há uma cena que evoca o cadáver de Heitor arrastado por Aquiles, e um episódio similar ao Cavalo de Troia. Mas os mitos parecem truncados, tortos, como lembranças esmaecidas da infância da humanidade. 

Talvez por isso Miller não permita a suas criaturas nem o respiro da arte ligeira: o mundo pós-cultural que ele concebeu é desprovido de memória. Na trupe de Dementus, é verdade, existe um estranho velho conhecido como o Historiador, o único que sabe ler e que guarda conhecimentos esparsos do mundo antigo. Mas é quase uma figura ornamental. 

Esse deserto material e cultural pode ser nosso futuro?

Em Nosso futuro pós-humano, livro de 2002 sobre as consequências da biotecnologia, Francis Fukuyama tentou comparar as duas grandes distopias da literatura inglesa do século 20. Concluiu que o controle social pelo hedonismo e pela manipulação genética de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, ainda poderia se realizar; o regime supertotalitário imaginado por George Orwell em 1984, de outro lado, teria saído do horizonte das possibilidades com o esfacelamento da União Soviética. A avaliação caducou muito rapidamente sob o regime de Putin.

A ficção distópica, de toda forma, não está aí para fazer profecias. Ela funciona bem quando apresenta uma versão extrema de tendências do presente. O deserto do presente absoluto bem pode ser o nosso deserto. Trafegamos de desastre a desastre, esquecendo misericordiosamente o último fracasso para melhor suportar o próximo. Ainda lembramos dos aviões que derrubaram as Torres Gêmeas, da crise dos subprimes, da pandemia?

A vida em rede social também é uma wasteland, uma paisagem fragmentada e infértil, um agora sem fim de memes virais, dancinhas de TikTok, sinalizações de virtude, guerras culturais, teorias da conspiração, boatos, tretas, cancelamentos, linchamentos. Volta e meia alguém é arrastado pela banda larga, dilacerado pelo acidente de uma palavra mal colocada, de uma opinião impensada, de uma frase fora do contexto.

Furiosa está indo mal nas salas de cinema. No momento em que escrevo, sua bilheteria mundial, com três semanas de exibição, está em 145 milhões de dólares. A produção custou 168 milhões. O público talvez preferisse mais uma história de ação vazia no lugar de um filme que nos confronta com a vacuidade de nossas vidas.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Não gosto desse tipo de filme mas com certeza reconheço a temática , onde não temos mais como fugir. Como nos salvaremos é o problema.

  2. O fracasso do filme não está relacionado ao mérito do mesmo, mas sim com o identitarismo na cultura se voltando contra seus próprios idealizadores. O público está tão farto da "girl boss" que está, de antemão, rejeitando filmes de ação protagonizados por mulheres. Uma injustiça inevitável

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