Secretaria de Cultura da Cidade do MéxicoA claque de Caetano Veloso se ressente quando o estereotípico “pobre de direita” acusa seu elitismo

O “caetanismo” é a ideologia da elite que não se quer elite 

Um raro ensaio de crítica cultural que sai do previsível diagnostica a crise existencial da velha MPB no país que quase reelegeu Bolsonaro 
30.05.24

O Spotify hoje me ofereceu um novo single de Caetano Veloso. Não ouvi ainda. Mas o título me soou familiar.

Sim, claro: You don’t know me é a primeira faixa de Transa, disco de 1972.

Trata-se de uma regravação, portanto. Os créditos no Spotify informam que Caetano canta ao lado de Luísa Sonza, cuja voz nunca ouvi. Sei que ela faz certo sucesso – e que fez muito barulho com uma entrevista em um programa matinal de TV. Desabafou alguma mágoa íntima, de uma traição, creio. Não acompanhei o caso.

Por um tempo, fui editor de cultura de uma revista que também fazia certo sucesso. Era minha obrigação estar por dentro dessas coisas todas – o que a moça disse no programa da Globo e o que cantou com o medalhão da MPB. Hoje, não me sinto mais obrigado a ter opinião sobre as canções que os algoritmos das plataformas de música me apresentam.

Não tenho pressa de ouvir Caê e Luísa. Mas deveria ter sido mais rápido para comentar “A síndrome caetanista”, ensaio de Luigi Mazza publicada na revista piauí deste mês que já se encerra.

De cara, o título me deixou curioso. Mas deixei para ler depois. “Tenho de ler”, pensei eu, duas semanas depois, quando Josias Teófilo escreveu a respeito do artigo nesta Crusoé. Mas não li. Josias recomendou o texto efusivamente quando nos encontramos na fila de autógrafos de STF – Como chegamos até aqui? (que ainda não li…), do amigo Duda Teixeira. No dia seguinte, finalmente li o texto.

Achei sensacional.

Não se trata de uma crítica à música de Caetano. Mazza vai pelo caminho do que poderíamos chamar de sociologia da recepção: ele examina o modo como certa classe média intelectualizada e de esquerda ouve o compositor baiano. Essa turma trata o cantor de Podres poderes com reverência quase religiosa, como se ele fosse um artista-oráculo e um símbolo da nacionalidade. Só que a ideia de Brasil que o Tropicalismo nos legou – um país eclético e espontâneo, entre Vicente Celestino e João Gilberto – envelheceu, se é que já não caducou.

Caetano, seus companheiros de geração, sua entourage e seu público ainda se imaginam atores de ponta no grande teatro da nação. Mas o fato é que não se mostraram capazes de compreender o Brasil feio e sujo que emergiu no palco político em 2018, com a ascensão do bolsonarismo. Escandalizados com a vulgaridade ruidosa da nova direita, eles não conseguiram articular uma crítica consistente ao governo de Jair Bolsonaro. Mas se consolavam de sua impotência gritando “ele não!” entre uma e outra música nos shows de Caetano.

Estou parafraseando o artigo com demasiada liberdade e talvez um tanto de imprecisão. Narciso gosta do que é espelho: penso ter encontrado em Mazza temas e argumentos que esbocei aqui e ali. A impotência do intelectual de classe média frente ao bolsonarismo foi tema de “A ilusão da resistência”, que publiquei na falecida Época (não falei de Caetano nesse artigo – mas critiquei Bacurau, que Mazza qualifica como “a grande obra do caetanismo“). No seu ensaio, Mazza analisa com muita acuidade outra ilusão dessa turma: a ideia de que o “verdadeiro Brasil” seria Caetano, Chico, Gil, a MPB, e não as passeatas, motociatas e intentonas da Horda Canarinha. Rocei esse tema em “Um país bloqueado entre o alívio e o medo”, que escrevi para um especial de final de ano de Crusoé.

Mas há diferenças importantes entre as coisas que escrevo e “A síndrome caetanista”. O autor é uma voz de esquerda chamando a “esquerda institucional” (vale dizer, PT, simpatizantes e agregados) à realidade. Esse não é um esforço ao qual eu me dedicaria… Mazza, além disso, busca amparo em um crítico marxista por quem não tenho apreço, Roberto Schwarz. Ao modo de Schwarz, ele emprega categorias marxistas. A certa altura do texto, reencontrei até a palavra “burguesia” (Ainda existe o burguês clássico, de cartola e charuto? Em O burguês, o crítico italiano Franco Moretti – outro admirador de Schwarz – deixa a sugestão de que o último deles foi Benjamin Guggeinheim, que afundou como um cavalheiro no Titanic).

O que Mazza está dizendo, se o interpreto corretamente, é que o tal caetanismo é uma ideologia no sentido marxista do termo: uma falsa consciência, que mascara as duras realidades de classe. Pois a claque de Caetano Veloso constitui uma elite que não consegue se ver como elite e que se ressente quando o estereotípico “pobre de direita” acusa seu elitismo. As “pessoas da sala de jantar” ironizadas no disco-manifesto da Tropicália hoje são devotas do “caetanismo” e gritam “sem anistia” nos teatros.

Sim, mas sim, mas não, nem isso“: houve um tempo em que as ambiguidades de Caetano autorizavam seus admiradores a gostar de um Brasil que não cabia na sala de jantar. Era assim quando ele cantava Dom de iludir junto com Um tapinha não dói. “Algo se perdeu, algo se quebrou, está se quebrando”: longe do palco, essas conciliações não são mais possíveis. Ou talvez a brutalidade bolsonarista só tenha mostrado que elas nunca foram possíveis.

De algum modo que não sei definir bem, a colaboração de Caetano e Luísa Sonza me parece um desdobramento previsível do “caetanismo” de que fala Mazza. Hoje ocupando o centro do estalishment cultural, a vanguarda tropicalista unge o hype da hora. No mesmo movimento, Caetano Veloso mostra que se mantém up to date, que ainda consegue falar à jovem elite que não se sabe elite.

Mas posso estar cometendo uma injustiça. Ainda não ouvi a nova versão de You don’t know me. Me perguntem a respeito daqui a duas ou três semanas.

 

Jerônimo Teixeira é escritor

 

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  1. Acho que o Ricardo Coelho está certo. Melhor é deixar de falar de Caetano e de Chico Buarque. São grandes artistas e coisa e tal, mas já deu, né?

  2. Deploro o lulismo qto o bolsonarismo.. acho q pouco ou nada vão legar ao futuro.. Qto ao último entendo q fez a sociedade repensar se o Estado tem de financiar a "cultura" com aspas mesmo..

    1. Caetano se atualizou. Tornou se mau patrão. Registra só metade do salário da governanta na Carteira de Trabalho e o resto paga "por fora". Como alguém pode explorar o trabalho de pessoas menos favorecidas e ainda ser guru das esquerdas? Como pode alguém ter tanto talento e lhe faltar vergonha na cara?

  3. A caetanice já era moda entre a "esquerda alternativa" nas universidades brasileiras no final dos anos 70. Vivi isso e achava Caetano um talentoso músico popular e um desprezível comentarista sobre qualquer assunto. Já se vão quarenta e tantos anos e não entendo a razão de Crusoé dar destaque a algo tão velho. Esqueçam do Caetano e abordem assuntos culturalmente relevantes nos poucos artigos da Crusoé e, sobretudo, da "Ilha de Cultura". De que cultura estão falando? Acaso Show Biz é cultura?

  4. O caetanismo é cafona. Seus adeptos são ovelhas lobotomizadas que ignoram que abdicar da sua liberdade de pensamento apenas os atrela à singeleza dos ignorantes que eles juram odiar (e acreditam mesmo combater)

  5. Acho que essa bolha dos cantores da tropicália já estourou. Eu, particularmente, não aguento nem ver a cara desses artistas. Não acredito que eles estejam ainda pensando como no tempo da Ditadura. Acho que se seguram nessa onda para manter seu público. Apenas negócios.

  6. Fiquei curiosa ao ler o texto fui ouvir. Não é ruim. Esses caras são muito bons de música, deveriam se ater a ela em vez de ficarem pregando como se ainda estivessem em maio de 68. Roger Waters é outro.

    1. Sim! Não estamos mais no período das décadas de 1960/70! Entramos no século XXI!! Gostávamos das músicas do Caetano/Chico, quando tínhamos 20 anos e estávamos na UFRJ!!! Tudo mudou, agora temos outros "problemas".

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