Ricardo Stuckert / PRLula com Lira: presidente da Câmara pediu que palavra "jabuti" não constasse na transcrição

Jabuti de blusinha

Parlamentares da situação e da oposição, de direita e de esquerda, usam o recurso. Mas ninguém gosta de assumir a prática
30.05.24

O “Projeto de Lei das blusinhas da Shein” foi um dos assuntos mais quentes desta semana. Depois de muita negociação entre o presidente Lula e Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, decidiu-se que o imposto de importação de compras internacionais de até 50 dólares seria de 20%, o que vai afetar os sites chineses Shein, Shopee e AliExpress. A questão agora subirá para o Senado. Um dos lances mais curiosos dessa história é que a taxação das blusinhas não era o tema do projeto de lei, e muito menos tinha relação com ele. O objetivo do projeto de lei número 914 era instituir o Programa de Mobilidade Verde e Inovação, para estimular a “descarbonização” e a produção de carros e autopeças no país. Não tinha nada a ver com as “bugigangas” da China.

Foi um exemplo clássico de “jabuti”, as emendas que são inseridas sorrateiramente pelos parlamentares em projetos de lei e em medidas provisórias. Como elas não têm relação com o assunto principal, são tão esdrúxulas quanto um jabuti no tronco de uma árvore. É daí que vem o seu nome. Uma citação comum para explicar sua origem, sem autor conhecido, diz que: “Jabuti não sobe em árvore. Se está lá em cima, ou foi enchente, ou foi mão de gente”.

O maior problema dos jabutis legislativos é que eles podem ser aprovados sem o devido escrutínio do público ou dos demais parlamentares. Uma das palavras usadas para defini-los é contrabando, pois seriam feitos de maneira clandestina, por debaixo dos panos. Não por acaso, eles costumam aparecer nas medidas provisórias, que têm até 120 dias para serem aprovadas. A pressa, nesse caso, faz com que os seus autores vejam uma oportunidade para aprová-los sem chamar atenção.

Dessa maneira, uma medida provisória sobre assistência emergencial a imigrantes já foi usada para autorizar empreendimentos em terras indígenas. Um projeto para recriar o seguro obrigatório para veículos (DPVAT) foi usado para aprovar a antecipação de gastos de 15 bilhões de reais não previstos no Orçamento. Nem todos prosperam, é claro. Uma medida provisória para regulamentar as apostas esportivas quase foi usada para reduzir impostos de shopping centers. Outra, para beneficiar o setor aéreo, quase foi utilizada para destinar verba do Sesc e do Senac para a promoção do turismo internacional no Brasil. Foi vetada por Lula.

Pegos no flagra, com o jabuti nas mãos, os parlamentares costumam negar qualquer vínculo com o pobre animal. Hoje, pega mal promover um jabuti. Ao longo dos anos, a sociedade brasileira foi aprendendo a identificar a artimanha e a denunciá-la. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal, STF, considerou a prática inconstitucional.

Arthur Lira, um dos maiores criadores de jabutis, é um dos que mais tenta se afastar da imagem negativa que o quelônio legislativo desperta. Em 2021, ele negou a existência de jabutis na medida provisória sobre a desestatização da Eletrobras. Uma das emendas, por exemplo, favorecia a contratação de usinas termelétricas. Na argumentação de Lira, qualquer coisa que estivesse no mesmo assunto (no caso, energia) não poderia ser considerada um jabuti. “Se a medida provisória falar de energia, e dissermos que matéria pertinente com a energia é jabuti, depreciaremos o trabalho de deputados e deputadas que têm total respaldo para fazer quaisquer emendas que pensem ser meritórias, e o Plenário decide por sua maioria”, disse Lira.

No início de maio, Lira ordenou que o termo “jabuti” não aparecesse nas notas taquigráficas da discussão na votação da urgência do PL 914 (o das blusinhas da Shein). Na ocasião, o deputado Capitão Alberto Neto, do PL, pediu mais tempo para analisar o tema, pois acusava a presença de um jabuti no texto. Lira não gostou. “Peço que as notas taquigráficas retirem do texto a palavra ‘jabuti’. Não é jabuti, deputado. Estamos tratando de equiparação de competição da empresa nacional, porque a empresa automobilística é mais importante que o varejo? É para quebrar o varejo do país em detrimento de uma narrativa que o senhor defende? A determinação é de retirar da taquigrafia a fala do parlamentar sobre jabuti”, disse Lira.

No ano passado, o governo Lula acusou a oposição de inserir jabutis em medidas econômicas, as quais o Executivo queria aprovar logo. Trata-se de um comportamento típico dos políticos em Brasília: o de negar a paternidade dos jabutis e acusar o rival de sempre pendurar esses répteis nas árvores. Um levantamento feito pela cientista política Giovanna Perroni, coordenadora de relações governamentais do Degrazia & Advogados Associados, mostrou que, em 52 medidas provisórias que tramitaram no ano passado, a base governista inseriu sete emendas oportunistas, sem conexão com o tema principal. “O jabuti é uma ferramenta que tem sido usada em todos os governos, seja pela situação ou pela oposição”, diz Giovanna.

Em seu trabalho de investigação, Giovanna analisou com cuidado medidas provisórias sobre temas diversos, relatórios e emendas apresentados. Alguns documentos tinham mais de trezentas páginas. “Para se identificar um dispositivo como um jabuti, que por vezes trata de temas tecnicamente específicos e complexos, é necessário um processo analítico minucioso e demorado. Algumas vezes, o jabuti trata de um assunto claramente destoante. Em outras, é preciso uma análise mais profunda”, diz ela. Não se trata de um trabalho fácil. Mas, quando um jabuti é denunciado, ninguém quer ser o responsável por ele. Outra opção é negar até o fim que se trate de um jabuti, como faz Arthur Lira. Seriam tartarugas?

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  1. SE OS "JABUTIS" SÃO INSCONSTITUCIONAIS, ESSE PL QUE DEFINE TAXAÇÃO DAS IMPORTAÇÕES TAMBÉM É. E AÍ?????????

  2. Não são jabutis mas batráquios como os demais poderes a esmagar a nação submissa ... a pior legislatura de nossa triste história.

  3. O jabuti é o sinal patognomônico da qualidade do nosso legislativo. Bizarro e asqueroso, típico dos ratos que querem edificar suas artimanhas na surdina. Lira, autoritário como sempre, é um bom rosto para o jabuti, seu legado como presidente da câmara será terrível

  4. Na lei da desestatização da Eletrobras foi marcante a presença de dois parágrafos com mais de uma folha de tamanho, sem ponto nem vírgula, só pra evitar o veto dos jabutis

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