Raul Baretta / SantosO goleiro machucado do Santos, João Paulo, é retirado do campo

Gol e castigo

Renato Marques se arrependeu no instante seguinte ao marcar um gol contra um goleiro lesionado, e não tem abuso de fair play que justifique isso
30.05.24

Henry Louis Mencken dizia que a consciência é aquela voz interior que nos adverte de que alguém pode estar olhando. Havia 7.303 torcedores no estádio Independência assistindo à partida entre América-MG e Santos em 24 de maio, pela Série B do Brasileirão, além das milhares de pessoas que acompanhavam o jogo pela televisão. Todos viram o atacante Renato Marques empurrar a bola para a baliza vazia enquanto o goleiro João Paulo, que acabara de romper o tendão de Aquiles do tornozelo esquerdo, pedia atendimento médico.

A cena é feia e desencadeou debates apaixonados sobre a conduta do atacante. Renato não infringiu nenhuma regra. Seu gol valeu e o América-MG venceu o Santos por 2×1. Mas sua atitude foi condenada pelos adversários, e os analistas mais românticos defenderam que o time mineiro deveria até ter entregado um gol aos adversários, para corrigir o deslize. Não seria a primeira vez.

O treinador argentino Marcelo ‘Loco’ Bielsa ordenou aos jogadores do inglês Leeds, que comandava em 2019, que permitissem que o Aston Villa empatasse o jogo após um gol marcado por sua equipe enquanto um jogador adversário que se machucara pedia atendimento. Boa parte dos jogadores do Aston Villa time parou de jogar. A cena entrou para a história pelo fair play, assim como poderia ter entrado a protagonizada por João Paulo e Renato.

Os pragmáticos argumentam que o fair play virou um subterfúgio para enganar os adversários e levar vantagem, principalmente do lado de baixo do Equador. É verdade. Os goleiros, que não precisam sair de campo para atendimento, se especializaram nesse tipo de subterfúgio. Quando seus times estão sendo muito pressionados, surge um incômodo no ombro ou algo parecido, os médicos entram em campo e o jogo esfria.

No caso de João Paulo, contudo, esse cenário não se aplicava. Era início de jogo e ele já tinha se livrado da marcação do atacante do América-MG quando sentiu a lesão; não teria motivo para fingir. Poderia ter pegado a bola com as mãos, para não testar a sorte, mas estava de fato machucado, e gravemente.

Nada é mais eloquente, contudo, do que a atitude do próprio Renato após marcar o gol. Ele não celebrou, deixando claro que tinha a consciência exata do que acabara de fazer.

“À pergunta sobre o motivo por que se sentira impelido a denunciar-se, respondeu que o fizera por um sincero arrependimento”, diz Dostoiévski ao descrever, no clássico Crime e Castigo, como, consumido pela culpa, Rodion Raskolnikov admitiu que matou a usuária Alíona Ivânovna e sua irmã Lisavieta.

Pode-se debater o que o time do América-MG deveria ter feito diante da evidente imoralidade de tirar vantagem de um adversário fora de condição de jogo. Mas o fato de que o gol de Renato Marques foi imoral é indiscutível, como o próprio autor deixou claro ao não celebrar.

 

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  1. Há muito que é legal sem ser moral. Este é um caso. Caberia ao líder do time, seu técnico, obrigar os jogadores a deixar o Santos empatar o jogo

  2. Fair play é do próprio jogador, se ele tem caráter, se é do bem, ele não finge que está lesionado e não tira vantagem sobre outro que está lesionado...O Brasil perdeu a copa de 1966, na Inglaterra, pois caçaram Pelé implacavelmente, machucando-o propositalmente, sem dó. Pelé nem pôde jogar mais no campeonato mundial de 1966. Quem tem categoria e fair play não cumpre ordens do técnico para lesionar os craques adversários.

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