Palácio do PlanaltoPara o presidente brasileiro, "Putin é uma pessoa que quer a paz"

Solidariedade venenosa

Viagem de Jair Bolsonaro à Rússia fortalece Putin, que segue com ameaças à Ucrânia. Para o Brasil, o temor é as milícias digitais bolsonaristas ganharem armas mais poderosas
18.02.22

Bastou que o presidente Jair Bolsonaro e o russo Vladimir Putin ficassem frente a frente para que o anfitrião colhesse os frutos de sua decisão de convidar o brasileiro para uma visita ao Kremlin. Após deslocar mais de 150 mil soldados para perto das fronteiras com a Ucrânia e ameaçar uma invasão militar, Putin ouviu diretamente da boca de Bolsonaro que o Brasil é solidário à Rússia. Quase duas horas mais tarde, na saída da reunião, o brasileiro tentou refazer a frase inicial, dizendo que o Brasil era solidário “a todos aqueles países que querem e se empenham pela paz”. Mas, dado o acúmulo de declarações atarantadas, o remendo não colou.

A passagem de três dias de Bolsonaro por Moscou ficou marcada como uma aproximação indevida e desnecessária com a Rússia, que usou o evento em sua rixa com o Ocidente democrático e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. À parte os benefícios econômicos incertos, a reunião ainda alimenta o receio de que possa trazer consequências negativas para a eleição brasileira deste ano.

“Bolsonaro não disse em que o Brasil seria solidário. Ele não construiu a frase com predicado. Mas isso está absolutamente subentendido. Só se pode ser solidário a um país num contexto de crise, de divisão, de polarização. O Brasil, portanto, é solidário à Rússia nesse imbróglio com a Ucrânia”, diz o historiador Felipe Loureiro, coordenador do curso de relações internacionais da Universidade de São Paulo e do Observatório da Democracia no Mundo. Além da frase atrapalhada de Bolsonaro, seu posicionamento é reforçado pela recusa em aceitar um convite do presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, de visitá-lo em Kiev, e da manutenção da viagem à Rússia, mesmo após os apelos de diplomatas americanos, que solicitaram o seu cancelamento.

Outras declarações de Bolsonaro geraram mais constrangimento internacional. O presidente brasileiro afirmou que “Putin é uma pessoa que busca a paz”. Dessa maneira, aderiu à narrativa do Kremlin, que trata a Rússia não como agressora que desrespeita o direito internacional e a soberania dos países vizinhos, mas como vítima. Uma olhada ao redor mostraria o exato oposto.

No mesmo dia em que Bolsonaro mexia nervosamente nos papéis ao falar no Kremlin, os sites do Exército e do Ministério de Defesa da Ucrânia foram derrubados. A suspeita era de mais uma ação de hackers russos. No dia anterior, na terça-feira, 15, a câmara baixa do Parlamento russo, a Duma, aprovou uma resolução do Partido Comunista pedindo que Putin aprovasse a criação de dois estados soberanos, em Donetsk e Luhansk, duas regiões do leste da Ucrânia, invadidas em 2014 por soldados russos disfarçados. Cerca de 14 mil pessoas morreram desde então nesse conflito. Caso aprove a resolução, Putin enterrará de uma vez os Acordos de Minsk, assinados em 2014 e 2015. Apoiados por França e Alemanha, esses acordos são atualmente a principal via diplomática para resolver a crise — criada inteiramente pelos russos. “Se Putin aprovar a resolução da Duma, isso significará a destruição dos acordos de Minsk, pois esses tratados assumem que Donetsk e Luhansk são parte da Ucrânia”, diz Michael Ratushnyy, diretor da Coordenação Mundial dos Ucranianos, em Kiev. “Putin está usando a Duma para colocar ainda mais pressão sobre a Ucrânia.” Na quinta, a Rússia reduziu ainda mais as possibilidades diplomáticas  ao expulsar o vice-embaixador americano, Bart Gorman, lotado em Moscou.

ReproduçãoReproduçãoBatalhões russos estão a 50 km da fronteira
Bolsonaro também contribuiu para a disseminação de notícias falsas, terreno em que os russos são especialistas. Na segunda-feira, 14, um representante do Ministério da Defesa da Rússia afirmou que algumas unidades voltariam a seus postos permanentes. Bolsonaro e seus seguidores imediatamente compraram a versão do Kremlin, e espalharam que o presidente teria alguma participação no recuo de tropas. O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu que Bolsonaro deveria ganhar o Nobel da Paz. Após um jantar com empresários, o próprio presidente alimentou a história: “Mantivemos nossa agenda e, por coincidência ou não, parte das tropas deixaram as fronteiras”.

Foi uma pegadinha russa. Os Estados Unidos, a Otan e a Ucrânia disseram que não viram evidências do recuo. “Infelizmente, há uma diferença entre o que a Rússia diz e o que ela faz”, afirmou o secretário de estado americano, Antony Blinken, em entrevista à emissora americana ABC. “E o que estamos vendo não é um recuo. Pelo contrário, continuamos a ver forças, especialmente forças que estariam na vanguarda de qualquer agressão contra a Ucrânia, em massa na fronteira.”

Boa parte dos batalhões russos está a menos de 50 quilômetros da linha que divide os dois países. Na manhã da quinta-feira, 17, quando Bolsonaro estava a caminho da Hungria, para visitar o ultraconservador Viktor Orbán, forças apoiadas pela Rússia atacaram com projéteis 20 locais na região de Luhansk. Uma escola de jardim de infância foi atingida. Três professoras ficaram feridas. Em seguida, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que “há todos os indícios de que os russos estão preparados para entrar na Ucrânia”.

Com o intuito de dar alguma finalidade para a viagem presidencial, fora da disputa geopolítica entre Putin e o Ocidente, bolsonaristas espalharam que a visita de Jair Bolsonaro à Rússia era indispensável para garantir o suprimento de fertilizantes ao Brasil. A lógica seria que as substâncias russas são indispensáveis para o agronegócio, setor que carrega o país nas costas. Quem derrubou o argumento bolsonarista foi o ex-ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em uma centelha de bom senso. “Tudo o que o Brasil poderia tirar de vantagem, sobretudo quanto à importação de fertilizantes, poderia ser tratado e conseguido sem a necessidade de uma visita presidencial, a qual sempre sinaliza algo maior”, disse Araújo. “Não entendi muito bem qual seria o grande projeto dessa viagem à Rússia. (…) O que estamos fazendo é entrando no jogo do Putin, que a gente não sabe direito qual é, mas que é muito complicado para a Ucrânia e para muitos outros países.”

A preocupação, acentuada por essa viagem, é que o jogo do Putin tenha alguma ligação com as eleições presidenciais brasileiras. Segurança digital e defesa cibernética estavam na pauta da reunião entre Bolsonaro e Putin, segundo divulgou o Gabinete de Segurança Institucional, GSI, comandado pelo general Augusto Heleno. A Rússia é o país que mais interfere em eleições de outros países, promovendo ataques hackers e campanhas de desinformação.

Palácio do PlanaltoPalácio do PlanaltoCarluxo em reunião na Duma, ao lado do pai
A forma como o governo conduziu a viagem a Moscou suscita algumas dúvidas pertinentes. Contrariando a praxe diplomática, não foi divulgada a lista de integrantes da comitiva presidencial. O ministro da Economia, Paulo Guedes, não foi convidado, o que é mais um indício de que o comércio não foi o ponto central do encontro. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, não embarcou porque contraiu Covid. A ala militar, porém, estava em peso, representada pelo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, pelo secretário-geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos, pelo secretário de produtos de defesa Marcos Degaut Pontes e pelo secretário especial de assuntos estratégicos, almirante Flávio Augusto Viana Rocha.

Quem mais chamou a atenção, contudo, foi o filho 02 do presidente e vereador no Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro. Ao ser indagado sobre a razão de levar seu rebento, Bolsonaro disse que Carluxo estava dormindo em seu quarto e que mexia nas redes sociais, “prestando informações a todos”. O vereador é tido como o coordenador do “gabinete do ódio”, que ataca adversários do presidente pela internet. “Face, Telegram, Twitter passam pelo crivo dele. Uma pessoa que não ganha nada do governo federal”, disse Bolsonaro. Outro membro do gabinete do ódio que foi para a Rússia é Tercio Arnaud Tomaz, que desembarcou em Moscou dias antes da comitiva.

Mais do que atualizar as postagens presidenciais, Carluxo sentou-se à direita do presidente em sua reunião com Vyacheslav Volodin, o presidente da Duma. Em uma foto da reunião com Carluxo, aparecem amontoados ao fundo da sala o general Heleno, o general Luiz Eduardo Ramos e o almirante Flávio Augusto Viana Rocha. Volodin é um poste de Putin. Ele já foi incluído em listas de sanções americanas, canadenses, australianas e europeias por seu papel na invasão da península da Crimeia, em 2014. Volodin ainda aparece na lista da Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos Estados Unidos, a Ofac. Um dia antes, Volodin foi quem comandou a aprovação da resolução para declarar as regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk como estados soberanos e independentes.

“O fato de Carlos Bolsonaro ter ido à Duma não é algo pequeno. Meu receio é que, com essa viagem, os bolsonaristas ganhem capacidade para ampliar essa infraestrutura de desinformação ou mesmo para fazer ataques e causar dificuldades no processo eleitoral”, diz Felipe Loureiro.

No Brasil, Bolsonaro tem tentado instrumentalizar as Forças Armadas para pressionar o Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, e gerar dúvidas sobre as urnas eletrônicas. Ministros do Superior Tribunal Federal, o STF, já demonstraram preocupações com a Rússia, origem de inúmeros ataques cibernéticos. A depender dos próximos acontecimentos, a tal solidariedade com a Rússia poderá se tornar um veneno para a democracia brasileira.

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