Paulo Vitale/ICQ

A ciência depois da pandemia

01.01.21
Natalia Pasternak

Se 2020 foi um ano de tragédia, marcado por morte e sofrimento, 2021 chega como um ano de esperança, inovação e ciência. Nunca fizemos tantas descobertas sobre saúde e doença em tão pouco tempo. Talvez só no auge da corrida espacial do século passado a ciência tenha recebido tanto destaque e atraído tanta curiosidade pelo mundo. E, provavelmente, nunca antes a  percepção da importância e da essencialidade da ciência para a sobrevivência da espécie humana na Terra foi tão aguda.

Porém, junto ao reconhecimento e à constatação dessa essencialidade, emergem também desconfianças e medos, frutos da dificuldade humana em lidar com a incerteza, compreender os processos pouco intuitivos do fazer científico, e ganha corpo uma politização desenfreada dos resultados científicos, reais ou nem tanto, que estimula teorias da conspiração.

O ano de 2021 será o das vacinas: marcado por novos testes, novos lançamentos, por campanhas de conscientização sobre a necessidade de recebê-las, sua segurança e eficácia. Teremos diferentes tipos de vacinas, com diferentes níveis de eficácia. Conseguimos viabilizar e trazer ao público métodos de imunização que até pouco tempo atrás eram apenas sonhos tecnológicos, como vacinas de mRNA (RNA mensageiro). Continuamos contando com as vacinas mais antigas, mas igualmente úteis, baseadas em vírus inativos e proteínas, e devemos ver resultados de outras técnicas e possibilidades ao longo de 2021.

As vacinas genéticas merecem destaque especial. Vacinas de DNA e de mRNA abrem caminho para uma nova era de vacinas rápidas, versáteis, baratas e fáceis de fabricar: uma vez estabelecida e validada a plataforma genética, basta trocar o “código-fonte” – a informação genética do vírus ou bactéria causador da doença da vez – para ter um imunizante totalmente novo. Com isso, poderemos reagir rapidamente a doenças emergentes, produzindo vacinas a toque de caixa.

A vacina para Covid-19 da Pfizer é a primeira baseada em mRNA a ser aprovada para uso humano na História, e em 2021 veremos a aplicação dessa tecnologia não só em imunizantes para outras doenças, novas e antigas, mas também, provavelmente, em vacinas terapêuticas para doenças genéticas e câncer.

Tudo isso requer, no entanto, investimento. Esse investimento precisa vir em duas formas — o financeiro, obviamente, para custear formação de cientistas, estrutura e equipamentos, mas também em educação e letramento científico. Uma tecnologia só atinge seu pleno potencial quando é aceita e abraçada pela sociedade. De nada adiantará termos vacinas modernas, feitas com a melhor tecnologia de manipulação genética, se a sociedade não tiver acesso à informação de qualidade para dirimir as dúvidas, legítimas ou capciosas, sobre os riscos e benefícios dessas tecnologias.

Também é preciso valorizar a ciência nacional, para que tenhamos autonomia não somente na produção de conhecimento, mas no desenvolvimento de produtos e tecnologia. A ciência brasileira é de ponta, e conta com pessoas altamente qualificadas. Nossos pesquisadores publicam nas melhores revistas científicas e gozam de prestígio internacional. No entanto, na hora de transformar a ciência aplicada em aplicação, morremos na praia. Um labirinto de barreiras financeiras, burocráticas, culturais e ideológicas efetivamente impede que o povo brasileiro se beneficie de produtos de ponta gerados no Brasil com base em conhecimento produzido por brasileiros.

A vacina para Covid-19 exemplifica este triste modelo. Temos laboratórios altamente qualificados e capazes, que poderiam ter desenvolvido uma vacina 100% nacional, trazendo autonomia para o Brasil, e transformando nosso país em um produtor de fato e não mais um expert em importar, fracionar e envasar doses. Essa produção poderia inclusive ser exportada para toda a América do Sul. Faltaram vontade política e investimento. A vacina Coronavac, por exemplo, baseia-se na tecnologia de vírus inativado, que o Instituto Butantan domina plenamente. Com o investimento adequado, um imunizante do mesmo tipo poderia ter sido criado, e não apenas testado, por brasileiros.

O investimento em vacinas precisa continuar, e no Brasil precisa começar para valer. Somos um país com excelente tradição de campanhas de vacinação, e temos duas fábricas de vacina pertencentes ao poder público. Precisamos abraçar essa tradição, e transformá-la em tecnologia de fato, com boas parcerias com o setor privado e boa comunicação com a sociedade. Se fizermos isso, estaremos menos vulneráveis na próxima pandemia.

Não devemos nos iludir. A próxima pandemia virá. E poderá surgir aqui mesmo, entre nós: o desmatamento e a abertura de novas fronteiras agrícolas põem comunidades cada vez mais numerosas em contato constante com reservatórios animais de vírus desconhecidos. A questão não é se um desses vírus vai se adaptar ao organismo humano – mas quando. Nossa capacidade e velocidade de resposta dependerão do quanto aprendemos, agora, a respeito da importância do investimento contínuo em ciência e tecnologia.

Hoje, no entanto, vivemos o desmonte da ciência nacional, com cortes no orçamento e o sumiço das bolsas de estudo que sustentam, mal e porcamente, nossos pós-graduandos – em tese, nossos futuros cientistas. Aqueles que conseguem, abandonam o Brasil para buscar carreiras melhores em outros países. E os que decidem ficar se veem diante da maior crise de financiamento e de credibilidade que já enfrentamos.

A ciência certamente mostrou-se essencial para trazer soluções para a pandemia. Mas será que isso foi suficiente para conscientizar a população da importância da pesquisa brasileira? Ou será que os cientistas vão receber apenas tapinhas nas costas e serão facilmente esquecidos assim que a emergência sair das manchetes, como ocorreu na crise do vírus zika – à qual a ciência brasileira reagiu heroicamente, heroísmo que foi “recompensado”, depois de apagados os holofotes, com cortes de verba e portas fechadas?

Tão perigosa quanto o desprezo pela ciência, e talvez mais insidiosa, é outra tendência negativa que apareceu durante a pandemia: o sequestro da credibilidade do processo científico legítimo por aventureiros que seduzem lideranças políticas com promessas mirabolantes de curas mágicas e soluções instantâneas.

Com o iminente início das campanhas de vacinação pelo mundo, e com uma boa dose de sorte, também no Brasil muitos desses profetas do jaleco branco começam a assimilar e propagar o discurso antivacinas: de que as imunizações são desnecessárias, ou perigosas, ou ambos.

Enfrentar esse tipo de discurso será o principal desafio da face pública da ciência brasileira ao longo de 2021. Qualquer dissabor enfrentado por alguém após vacinar-se – incluindo perder as chaves de casa ou ser atropelado na calçada – acabará, previsivelmente, atribuído a algum efeito esotérico indesejado do imunizante.

A quem interessa fomentar esse tipo de caos? Há interesses financeiros, de terapias “alternativas” e de “fortalecedores naturais” do sistema imune, mas também não se deve subestimar o investimento de autoestima e autoengano que muitos fizeram no início da pandemia ao apostar em soluções simples, engenhosas e erradas.

Uma atuação firme da comunidade científica e uma cobertura responsável da imprensa serão essenciais para evitar que teorias conspiratórias ganhem repercussão ampla e causem dano irreparável à saúde pública, incluindo mortes. Cientistas devem superar o espírito de corpo que muitas vezes os levam a silenciar diante de barbaridades ditas ou cometidas por colegas de título, instituição, sociedade, disciplina ou departamento. No caso da imprensa, será crucial resistir aos cacoetes da falsa equivalência e do uso eufemístico de “polêmica” para se referir a “erro” ou “mentira”.

Como sociedade, precisamos nos acostumar a diferenciar quem respeita a ciência pelo que a distingue – seus métodos cuidadosos e respeito pela evidência empírica – e quem apenas busca usar seu nome como palavra mágica e fonte de prestígio fácil. Essa será a grande disputa de 2021.

Natalia Pasternak é doutora em microbiologia, especialista em genética molecular, pesquisadora visitante do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência.

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  1. Dra. Natália, o que precisamos é parar de gastar TRILHÕES DE REAIS, em poucos anos, nos cursos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado em inutilidades, TORRADOS nas universidades públicas. A produção científica é rara, a de lixo é abundante. Não temos NENHUM Prêmio Nobel, em ciências e em nenhuma outra área. Pelo fim do financiamento dessa CANALHADA ESQUERDISTA VAGABUNDA!

  2. O problema foi o holofote da mídia que deslumbrou meio mundo acadêmico e políticos carreiristas. Todos adoraram aparecer na TV e deitaram falação com a certeza da "ciência" e espalharam o pânico na população. Bonner trabalhou no sábado(!) para COMEMORAR OS 100.000 - CEM MIL - MORTOS NO JORNAL NACIONAL!!! E do outro lado tinha um idiota , que é presidente da república, mais preocupado em defender seu filho ladrão de galinhas, se reeleger para manter o foro e escapar da cadeia.

  3. Pelo histórico de pandemias, não se sabe quando, mas em breve ocorrerá outra. Que esta pandemia sirva para que a população e o poder público se previnam de todas as formas! Eu mesmo, já tinha o hábito de possuir uma reserva de emergência, agora, focarei ainda mais nesse tipo de educação financeira para mim e para a família.

  4. Engraçado citar "interessses financeiros de terapias alternativas" ignorando a Big Pharma que é quem realmente controla isso tudo...

  5. Com todo respeito à doutora, não entendo porque não a ivermectina não é apontada pelo menos como uma das soluções plausíveis. Veja https://youtu.be/AfY9PMN2wa4. Veja e explique porque não houve devastação de pessoas na África. Como se pode ignorar tanha realidade. Não quero pensar que haja interesses bilionários por vacinas a fazer com que proeminentes mentes científicas simplesmente ignorem realidades tão gritantes, onde remédios baratos salvam milhões de pessoas, não é doutora?

    1. Na África não há estados como São Paulo com uma elite social e financeira injetando vírus no continente como no Brasil ao mesmo tempo que se recusava a ficar em quarentena sem o auxílio de empregados em suas próprias casas. Além disso, a baixa expectativa de vida justamente reduz a quantidade de pessoas que seriam obliteradas pela COVID-19: já morreram por outras doenças, fome, ou vítimas de regimes totalitários.

  6. ...bióloga e cientista competente. Como profa. do E. S., cientista social/ sanitarista/ epidemiologista, e autora , considero espalhafato sem lastro epidemiológico, prever outras pandemias.

    1. Concordo! Sem evidências, não há como chegar nessa afirmação.

    1. A Dalcomo é epidemiologa de raiz, respeitada em toda a comunidade científica da área da saúde e sem estrelismo.

  7. Excelente artigo! A crise que os pesquisadores enfrentam de forma gradual precisa ser levantada diariamente pela imprensa. Nossos pesquisadores precisam assumir o posto de heróis e cabe a imprensa dar valor e enobrecer tantos avanços realizados por esse grupo que o governo, de forma constante, tenta obscurecer.

  8. A Ciência é fundamental para o tratamento das questões patológicas físicas, no nosso país as questões patológicas morais só cadeia para dar jeito.

  9. INFELIZMENTE, NO BRASIL HÁ MUITA INFORMAÇÃO FALSA ACRESCIDA DA FALTA DE COORDENAÇÃO DO GOVERNO FEDERAL NO ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA. HÁ, TAMBÉM, MUITA DESINFORMAÇÃO SOBRE AS VACINAS, PROMOVIDAS TODOS SABEM POR QUEM. TENHO ACOMPANHADO ALGUMAS DAS SUAS ENTRVISTAS NA TELEVISÃO E ESTE ARTIGO COMPLETA COM CHAVE DE OURO O MEU ENTENDIMENTO SOBRE AS VACINAS DISPONIVEIS CONTRA O VIRUS. APESAR DOS ATAQUES NEGACIONISTAS CONTRA AS VACINAS QUE ELAS VENHAM E NOS DEVOLVAM A LIBERDADE TÃO SONHADA. OBRIGADO!

  10. Mesmo nesse “desgoverno” ,só nos resta ter esperança de dias melhores combatendo os negacionistas e ignorantes através das contribuições dos cientistas. Parabéns.

  11. Dra. Natália, parabéns! Brilhante análise do momento da Ciência no mundo e, especificamente, no Brasil. Apesar do Bozo e companhia, poderemos ser salvos pelas vacinas. Vacinas existentes graças à ação heróica, incansável e INTELIGENTE dos cientistas em suas diversas especialidades. Inteligência que falta à maioria dos políticos, ao Bozo e à grande parte da população, infelizmente! Só nos resta lutar pelo devido lugar da Ciência e por uma Educação melhor para todos. Receba minha admiração!

  12. agradeço a todos vocês e principalmente você que nos fez ficar informada nesta escuridão e ainda aprender muitas coisas que não sabia. me lembrei de uma música de Chico Buarque apesar de você amanhã a de ser outro dia . pensando em nosso presidente e no governo que temos.

    1. Sem a ciência e a pesquisa resta o obscurantismo. Uma sucessão de governos medíocres e populistas preferem o obscurantismo para se perpetuar no poder, espantam nossos cientistas e pesquisadores, depauperam nossas universidades. Difícil

  13. podemos e devemos nos espelhar nos nossos cientistas e notadamente na Dra Natália, uma cientista que em todos os momentos que pude vê-la atuar e falar, mostrando coerência com a verdade científica, me senti muito feliz e bem de ser brasileiro. Dra Natália mostrou que ciência não tem esquerda ou direita, têm sim compromisso com a verdade científica, capaz de ser reproduzida e comprovada. Infelizmente não teremos nesse governo ninguém capaz de interferir na ideologia maluca predominante. TRISTE

  14. Algumas palavras que explicassem como funciona pm as vacinas de DNA/RNA teriam ajudado mais que as lamentações sobre o corte de verbas. Somos um país pobre, com muitas necessidades em educação, segurança, saúde (incluindo pesquisas em remédios e vacinas, por que não?). Ficar reclamando somente não adianta, todos esses setores tem problemas claros. Como alocar o dinheiro disponível? Dependemos do congresso e do executivo, ambos lastimáveis. A responsabilidade e de todos nós.

  15. Parabéns e muito obrigada, Dra.Natália, pela sua incansável cruzada contra o obscurantismo que tenta tomar conta deste país.

  16. Dra. Natália, parabéns pela clareza e objetividade do texto. Vamos torcer para que essa geração que está se formando possa lutar por mais educação, saúde e segurança, pois só assim conseguiremos transformar grande parte de nossa sociedade que insiste em ainda viver na “lei de Gérson”. (Peço desculpas ao grande jogador, capitão do time por utilizar seu nome).

  17. Muita lucidez! Essa entrevista teria que ser repassada à exaustão! Não aguento mais ler e ouvir tanta bobagem espalhada por aí! Parabéns, doutora!

  18. Doutora Natália parabéns pelo artigo, assim como o descaso com a ciência no que concerne ao reconhecimento, bem como, da falta de investimentos, desde o início deste atual governo ele já mostrou a cara ao meio científico e educacional desconstruindo tudo, e os investimentos retirados nesta área demonstram o desinteresse de melhorarmos nestes quesitos. Por isso cientistas vão embora deste país que está chegando ao caos negacionista da ciência e educação.

  19. Parabéns Dra. Natalia pelo excelente artigo! Parabéns a todos cientistas, pesquisadores brasileiros e pelo mundo, envolvidos no desenvolvimento de vacinas para o Covid-19.

  20. Infelizmente essa pandemia nos pegou com um governo medíocre, ignorante e negacionista. Grande parte da sociedade brasileira, talvez motivada pela falta de governo, perdeu a oportunidade de crescimento como sociedade, como comunidade. Várias cenas de desrespeito as vidas dos próximos com tanta aglomeração. Na cidade do RJ, onde vivo, a comunidade gay que sempre brigou por direitos, diversidade e respeito promoveram festas enormes ignorando respeito por outros. Triste.

  21. Excelente artigo e reforça a necessidade dos pesquisadores se aproximarem mais da sociedade, essa comunicação é fundamental para combater a desinformação intencional de alguns grupos movidos por interesses os mais obscuros. É preciso que mais cientistas como a Natália, venham a público, expliquem, ilustrem, combatam os falsários e que a mídia deixe claro que não se trata de opiniões divergentes, mas sim mentiras! Esse seria meu desejo para 2021, só assim sairemos dessa pandemia fortalecidos.

  22. O artigo da Dra Natalia conseguiu brilhantemente mostrar todos os desafios que os brasileiros sensatos terão que enfrentar neste ano que se inicia hoje. Parabéns e muito obrigado Dra Natalia.

  23. Tudo que é moderno, complexo, sofisticado é rechaçado por quem defende o atraso, o obscurantismo e usa teorias da conspiração para tentar esconder sua ignorância e inépcia. Esse é o resumo da era que vivemos, com líderes como Trump e Coronaro. Quem tem cultura e conhecimento tem o dever de combater as mentiras propaladas por eles. Parabéns, Dra. Natália.

    1. Juarez, disse tudo. Também votei nesta “ coisa”, mas nunca mais terá meu voto. Malditos políticos e juizes corruptos.

    2. fico pensando como o mandrião pode implementar a cloroquina e afins sem o CFM nada fazer,sem protesto das sociedades médicas e científicas.

    3. Bozo negacionista teve o papel de psicopata em disseminar dúvidas . Um criminoso . Falsário Votei nessa desgraça pra combater à corrupção e fez tudo ao contrário. Maldito sejam Bozo , Lula , Dilma, Fhc, Aecio, Temer , Serra, Alckmin, E uma banda bem podre do STF ligada aos advogados corruptos .

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