Uma república moribunda
Aprovação da PEC da Blindagem é o triunfo de uma nova oligarquia cleptocrática, revestida de legalidade e imune à vergonha

No estertor desta República moribunda, enquanto ainda ressoa nas paredes apodrecidas do Congresso Nacional o eco cínico das palmas que aprovaram a chamada “PEC da Blindagem”, também conhecida como “PEC da Bandidagem”, o Brasil vê, sem surpresa, mas com renovado asco, a oficialização do regime de impunidade constitucional.
Como um organismo político que se vacina contra sua própria morte, a Câmara dos Deputados, num pacto transversal entre alas da esquerda e da direita, decidiu erigir um escudo jurídico para proteger seus membros não contra injustiças, mas contra a justiça propriamente dita.
Não é apenas uma manobra legislativa: é um ato ontológico de autodeificação do poder político, que se coloca, sem qualquer traço de vergonha na cara, acima da moral, da lei e do povo. Aqui não estamos diante de mera “imunidade parlamentar”.
Trata-se de uma mutação cretina do princípio da isonomia, isto é, da igualdade perante a lei, substituída agora por um modelo aristocrático invertido, em que os piores governam, se protegem e se absolvem, não pela excelência de suas virtudes, mas pela perversidade dos seus conchavos.
Se, na concepção aristotélica, a politeia é a expressão da razão comum dos cidadãos em busca do bem comum, aquilo que se estabeleceu no Brasil, com a aprovação dessa medida, é o triunfo de uma nova oligarquia cleptocrática, revestida de legalidade e imune à vergonha.
Preparem-se, mais do que já acontece, se essa PEC for efetivamente aprovada e sancionada, viraremos um México em termos de crime organizado no poder.
O crime político, que já era prática constante, agora será prática protegida.
Com a PEC, todo deputado e senador passa a carregar consigo um salvo-conduto que o exime de prestar contas à Justiça, ainda que em flagrante delito.
A Câmara não legislou: autocanonizou-se. Declarou-se santa, inviolável, e, acima de tudo, impune. O que se institucionaliza é o que Ortega y Gasset chamou de “barbárie da especialização”, em que os ocupantes do poder se tornam especialistas em permanecer nele: não para servir, mas para consumir o Estado como um parasita devora seu hospedeiro.
A isso se soma o acesso quase irrestrito aos cofres públicos. Não bastasse a impunidade penal, os representantes do povo se outorgam os direitos de uma casta sacerdotal que, além de não poder ser punida, se apropria livremente do sacrifício alheio.
O dinheiro público não é mais meio de governança: é tributo forçado pago à divindade parlamentar. O cidadão torna-se servo, contribuinte compulsório de uma estrutura que o devora moralmente, economicamente e espiritualmente.
Na contramão do liberalismo clássico, que vê na lei um escudo contra o poder arbitrário, o que temos é a conversão da lei em um artefato de blindagem para o próprio tirano.
Friedrich Hayek ensina que a liberdade só é possível quando o Estado está submetido à lei geral e impessoal. Mas, no Brasil, como se em paródia trágica, a lei tornou-se pessoal, seletiva, desigual.
Tornou-se, para alguns, espada. Para outros, escudo.
Para os políticos, um manto de invisibilidade. Um sistema moral legítimo é aquele que impede a agressão, até mesmo por parte do governo. Ora, que nome se dá a um sistema em que os agressores públicos são protegidos pela própria norma que deveriam obedecer?
Chama-se tirania. Chama-se ... Brasil!
Talvez devêssemos ouvir Sócrates, diante da turba política que hoje ocupa os púlpitos do parlamento: “Prefiro obedecer à verdade a aos homens”.
Sob um governo que prende o justo e liberta o corrupto, o lugar do homem honesto é a rua em protesto pacífico, mas veemente. E talvez seja hora de abandonar a ilusão de que a política brasileira está doente. Ela não está doente. Está em metástase.
A lei, uma vez prostituída, não se cura com reformas, mas com ruptura moral. Não há mais caminho dentro das instituições que foram desenhadas para se protegerem do próprio povo.
A liberdade, nesse cenário, não é mais uma promessa constitucional: é uma insurgência ética. É a escolha de viver como homem mesmo quando o Estado exige que vivamos como súditos.
Este é o tempo do luto republicano.
Mas também pode ser o tempo da alvorada, se tivermos coragem, como no tempo dos gregos, de crer que a verdade ainda pode ser mais forte que a força, e que a justiça ainda pode emergir mesmo do meio do cinismo legislativo.
Dennys Xavier é escritor, tradutor e PhD em Filosofia
Instagram: prof.dennysxavier
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Comentários (1)
Andre Luis Dos Santos
2025-09-17 15:11:05Excelente e, infelizmente, trágico.