Só a indiferença salva o Brasil (e o Neymar) da polarização
Minha filha completou 16 anos no dia da vitória do Brasil sobre a Suíça. Almoçamos no restaurante favorito dela, onde havia uma única televisão transmitindo a jogo, longe de nosso campo de visão. Perdemos todo o primeiro tempo. Chovia quando voltamos para casa, a pé. O comércio estava quase todo fechado – com exceção de...
Minha filha completou 16 anos no dia da vitória do Brasil sobre a Suíça. Almoçamos no restaurante favorito dela, onde havia uma única televisão transmitindo a jogo, longe de nosso campo de visão. Perdemos todo o primeiro tempo. Chovia quando voltamos para casa, a pé. O comércio estava quase todo fechado – com exceção de dois botecos, cujas mesas na calçada, protegidas por toldos, estavam apinhadas de gente ruidosa vidrada na televisão. Foi um refresco ver tantas pessoas com a camiseta amarela sem ter a menor ideia do candidato em que elas votaram. Na rua, sob a chuva, imergi na atmosfera de um país que se congraçava em torno de um desejo comum – o gol. A seleção era mesmo, como dizia Nelson Rodrigues, a pátria de chuteiras. Em casa, com a família, até eu, que não me entusiasmo por futebol, vibrei com o gol de Casemiro. A comemoração da vitória juntou-se à celebração do aniversário. Foi um bom dia.
Foi também uma ilusão: não vivemos em um tempo de congraçamento nacional em torno do esporte. O futebol também se polarizou, e Neymar hoje divide a torcida.
Um grupo diz que o craque do Paris Saint-German faz muita falta à seleção, e que a vitória sobre a Suíça teria sido menos sofrida se ele estivesse em campo. O partido oposto afirma que a classificação para a próxima fase, conquistada já no segundo jogo, atesta que a seleção dos moleques dispensa o astro. Se esse fosse de fato um debate futebolístico, minha absoluta ignorância sobre esquemas táticos me impediria de opinar. Mas não, a discussão não é esportiva. O assunto é, de novo, a política – ou esse barraco feio que passa por política no Brasil atual.
Para ser justo, tenho visto, na minha limitada bolha de redes sociais, pessoas genuinamente preocupadas com o desempenho da seleção entre os defensores de Neymar. Em geral, porém, elas se sentem obrigadas a desaprovar a conduta política de Neymar antes de elogiar sua habilidade como jogador. O crime de Neymar, todos sabem, foi ter apoiado Jair Bolsonaro. O jogador participou de uma live com o então candidato à reeleição, na qual prometeu que lhe dedicaria seu primeiro gol na Copa. Chegou a mostrar o gesto que faria (fará?) em campo: o sinal de vitória com as duas mãos, formando 22, número do PL, o partido que o mensaleiro Valdemar Costa Neto emprestou a Bolsonaro.
Aqueles que dizem que Neymar é dispensável não o perdoam pelo voto e pela promessa. Ao que parece, até a derrota em campo seria preferível a um gol do Brasil seguido de um sinal de apoio ao candidato que já perdeu as eleições. Para essas pessoas, o Brasil faria melhor se extirpasse a camisa 10 da equipe. Se eu fosse supersticioso, começaria a temer praga de petista: não foram poucos os que vi desejando que Neymar se lesionasse já no primeiro jogo, como de fato aconteceu.
A Fifa proíbe símbolos políticos em campo, a não ser que constituam manifestações por direitos humanos (que também estão proibidas, pois a Copa é no Catar). Nada disso é problema, pois Neymar certamente pode arcar com uma eventual multa imposta pela Fifa. As circunstâncias, no entanto, mudaram: quando prometeu o 22 depois do gol, Neymar confiava na vitória de seu candidato. Agora que sua previsão não se realizou, talvez ele prefira esquecer a homenagem prometida. Para falar em termos que não seriam estranhos ao próprio Bolsonaro, é brochante lembrar um perdedor no momento da vitória. De todo modo, o gesto teria (terá?) efeito nulo sobre o cenário político. O pleito já se realizou e os eleitos estão confirmados, a despeito dos melhores esforços do PL para melar o resultado. Talvez a resiliente Horda Canarinha, ainda acampada na porta dos quartéis, encontre algum alento em um gol dedicado ao líder que não fala mais com os liderados. A desejada “intervenção militar”, porém, não virá nem se Neymar desembarcar no Brasil marchando com a taça na mão e a bandeira amarrada no pescoço como uma capa de super-herói mambembe.
Não sou ingênuo de pedir que política e futebol sejam esferas apartadas. A separação talvez fosse desejável, mas não é possível. Na semana passada, Crusoé trouxe vários textos sobre a dimensão política do futebol – e sobre as tentativas de instrumentalizar o futebol para fins políticos. Franklin Foer já tratou desses temas em Como o Futebol Explica o Mundo, livro excelente, embora os casos que o jornalista americano apresenta talvez já estejam desatualizados (a obra é de 2004). A Fifa é ela mesma uma entidade política, para o bem e para o mal (na verdade, só para um dos dois, e nem preciso dizer qual). Tudo isso considerado, negar o lugar de um craque no escrete nacional por causa do voto que esse jogador declarou extrapola a política razoável. A coisa toda cheira a patrulha ideológica, a perseguição sectária, a linchamento moral.
Parece que também já se aventou tirar Cássia Kis de uma novela porque a atriz tem opiniões desagradáveis e já participou das performances histéricas da Horda Canarinha. Ela defende ideias idiotas, concordo – mas no que isso afeta seu trabalho de atriz? Imagine onde chegaremos se o cerco a celebridades bolsonaristas chegar ao trabalhador anônimo. Será que a turma que se manifesta contra o ódio na política chamará boicotes contra o chaveiro, o encanador e a diarista que votaram no candidato errado?
Decerto nem todo mundo que foi ao Twitter desejar que Neymar quebrasse a perna falava sério. Mas a piada cruel ainda carrega uma contraditória afetação de superioridade moral – uma presunção de estar em uma esfera superior aos 58 milhões de fascistas impenitentes que votaram no derrotado. E assim os petistas expõem a fatuidade da pacificação ou reunificação nacional de que Lula vem falando: o futuro presidente já está se acertando com o Centrão e com Arthur Lira, e pode até atrair o União Brasil para seu governo, mas, no chão duro da vida social de cada dia, ainda teremos celebridades acossadas em restaurantes ou canceladas nas redes sociais, e barracos em restaurantes, e episódios de violência entre fanáticos.
O assédio a figuras públicas, aliás, foi tema de um artigo recente meu – e já voltou a acontecer no Catar, onde bolsonaristas xingaram Gilberto Gil. Quase de imediato, emergiu na internet uma foto em que Gil e Neymar aparecem juntos e sorridentes, com a companhia adicional de Ivete Sangalo. A mensagem implícita é de que todos podemos ser amigos, a despeito das discordâncias políticas – um sentimento bonito mas tolinho, que ganhou expressão brega na publicidade de uma loja de perfumes na qual se diz que só o amor pode unir o Brasil.
Não precisamos de amor. Precisamos de indiferença.
Não falo da indiferença do “e daí?”, que se confunde com a insensibilidade. Falo de uma indiferença seletiva e inteligente: a indiferença pelo bolsonarismo do craque e pelo lulismo do músico, e a indiferença geral pela opinião política de quem não é político. E sem perder de vista a importância da política, talvez devamos tratá-la com menos intensidade e mais racionalidade. Deixemos a paixão para a torcida nos estádios: está provado que ela costuma eleger os piores governantes.
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Comentários (10)
Alberto de Araújo
2022-12-06 16:12:26Excelente. Antes só havia os fanáticos Lulistas, o Lula é maior que o PT. Hoje, além deles há os bolsonaristas. Julgam-os como mitos, deuses, extra terrestres. São doentes com cérebros gangrenados. Não sei até quando essa erva daninha destruirá o campo da racionalidade. Bolsonaro e Lula são autocratas enrustidos. Utilizam-se e apregoa um sentimento falso de democrata para chegar ao poder. São populistas. Assim sendo farsantes, que entopem o povo com falsas promessas que não tem esperanças.
Tania Maria De Carvalho
2022-12-05 20:54:33Não estou na frente dos quartéis, até porque aparentemente nada vai nos livrar de sermos governados pela "entidade" que o "sistema" decidiu transferir da cela de Curitiba pro Palácio do Alvorada. E por mais que nos calem, ainda temos capacidade de análise independente, podemos estar onde quisermos, apoiar o candidato que quisermos, sem nos perturbar com os adjetivos . "Chame-os daquilo que você é" - isso é o que fazem a mídia, os juízes e os adoráveis propagadores do" ódio do bem".
Ana Laura Andrade
2022-12-05 14:11:24Caro Jerônimo, a sua análise, apesar da tentativa louvável de APARENTAR imparcialidade, reforçou a visão ignorante de chamar o presidente de fascista, endossando o coro esquerdista que claramente ou apenas repete os absurdos da campanha eleitoral do condenado, ou simplesmente nunca prestou atenção nas aulas de história no ensino fundamental, derrubou pelo menos metade da credibilidade. E não vamos esquecer de que essa divisão política foi fomentada pelo próprio ladrão, lá em 98…
Ana Schiefer
2022-12-05 12:09:12Excelente reportagem. Parabéns pela análise fria e crua da realidade.
LUIS FERNANDO RAMOS DIAS
2022-12-05 08:26:38Muitos põem a culpa da polarização nos bolsonaristas. Mas trata-se na verdade de um desenvolvimento da estratégia da esquerda: a politização de todos os departamentos da vida.
Leda Navajas Haim
2022-12-05 07:29:58Adorei seu texto. Diz muitas coisas com as quais concordo. Ótimo texto.
Jaime
2022-12-05 06:11:21Parei de ler em "...Horda Canarinha..." a parcialidade do autor do artigo é NOTÓRIA.
Carlos Airton Santiago Cardoso
2022-12-04 15:10:44porque chamar os 58 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro de fascistas?
claide reis rocha
2022-12-04 14:38:37Genial...assino embaixo
Maria José Gomes dos Reis
2022-12-04 13:12:29É isso mesmo! Perfeito.