Quem são os “piqueteiros”, a linha de frente nas ruas contra um governo Milei
Manifestantes típicos da Argentina tiveram participação na queda de dois presidentes desde 2001
Favorito à Presidência da Argentina nas eleições deste domingo, 22 de outubro, Javier Milei tem como ideal o ex-presidente Carlos Menem, o mais liberal talvez de toda a história do país. Ironicamente, se chegar à Casa Rosada, Milei terá de lidar com uma força político-sindical que surgiu em reação ao governo Menem, na década de 1990, e derrubou dois presidentes desde então.
Trata-se dos chamados “piqueteiros”. Eles são conhecidos pelo seu método de protesto, o piquete, que envolve o corte de ruas e rodovias para paralisar o trânsito.
Os primeiros piquetes datam de 1996, durante o segundo mandato de Menem. Para frear a hiperinflação da virada da década de 1980 e 1990, Menem liberalizou a economia, mas sem zelo pela precarização do trabalho.
Acrescidos o avanço da tecnologia e uma crise econômica no México com impacto internacional, o desemprego e a pobreza na Argentina foram de mínimas de 6,3% e 26,9%, respectivamente, a picos de 18,4% e 40,2% ao longo dos anos 1990.
Desempregados não podem entrar em greve, afinal, não têm emprego. A solução foi os piquetes.
Em 2001, com o colapso da política econômica de Menem já sob o governo de Fernando de la Rúa, milhares de piqueteiros paralisaram Buenos Aires e derrubaram o então presidente, que precisou fugir da Casa Rosada de helicóptero.
Os piqueteiros conseguiram antecipar o fim de mandato de mais um presidente, Eduardo Duhalde, em 2003, após dois manifestantes serem mortos pela polícia durante um protesto.
Os principais agrupamentos piqueteiros do país se uniram sob um mesmo sindicato em 2011. Com a adesão de mais grupos piqueteiros, esse sindicato passou a se chamar União dos Trabalhadores da Economia Popular (Utep) desde 2019.
A organização dos piqueteiros decorreu da própria evolução do mercado de trabalho. Eles não são mais desempregados definidos apenas pelo piquete, mas sim trabalhadores autônomos.
“Quando nos unimos no início da década passada, calculávamos que 30% a 35% dos trabalhadores não tinham patrão. Não eram informais nem irregulares, mas sem patrão mesmo”, diz Esteban Castro, também conhecido como Gringo, um dos fundadores da Utep.
Castro é o secretário-geral da Utep desde a criação do cargo, durante a pandemia, e deixará o posto até o final do ano, quando haverá eleições internas. Ele é um dos sindicalistas mais influentes da Argentina, chamado pela imprensa de “o piqueteiro favorito” do presidente Alberto Fernández.
“Aqueles trabalhadores sem patrão são cartoneros [catadores de papel reciclável], vendedores ambulantes, trabalhadores vinculados à terra. É isso que denominamos trabalhadores da ‘economia popular’”, acrescenta Castro. Estima-se que mais de 8 milhões de pessoas integrem a dita economia popular na Argentina.
A Utep tem cerca de 500.000 afiliados — motoristas e entregadores de aplicativo não fazem parte e formam um coletivo próprio. As lideranças da Utep querem integrá-la à Confederação Geral do Trabalho (CGT), o maior coletivo sindical da Argentina, com 6 milhões de membros.
A CGT não aceita os piqueteiros por não serem trabalhadores assalariados. Todavia, há também membros da confederação que temem uma eventual hegemonia da Utep. Nenhuma agremiação da CGT tem tantos integrantes quanto o sindicato dos piqueteiros.
Os trabalhadores da economia popular ainda contam com membros no Congresso e no governo, como, respectivamente, a deputada Natalia Zaracho e o secretário de Economia Social, o poderoso Emílio Pérsico, do Movimento Evita, o maior grêmio da Utep.
Nestas eleições presidenciais, a Utep faz campanha para o presidenciável governista, o ministro da Economia, Sergio Massa, sem apoio oficial, pois o seu estatuto interno a proíbe.
Os piqueteiros tinham o seu próprio candidato, não unânime, nas primárias, realizadas em agosto. Era Juan Grabois, fundador do Movimento dos Trabalhadores Excluídos (MTE), um dos grêmios da Utep, muito associado aos cartoneros.
Grabois conseguiu quase 6% dos votos nas primárias da coalizão governista, União pela Pátria, contra 21% de Massa. Nas primárias, as porcentagens são em relação ao total de votantes, incluindo votos nos candidatos de outras coalizões, como Milei, da Liberdade Avança, que teve 30%.
“Várias coisas explicam a derrota de Grabois. Primeiro, a candidatura se definiu tardiamente. Não estava nos planos dele ser candidato”, diz Nicolás Caropresi, também conhecido como Nico, porta-voz do MTE.
“Depois, muitos da coalizão governista achavam que Grabois era um ‘salto no vazio’ por ser novo na política e estigmatizado pelo preconceito contra os piquetes. E o espaço na demanda por uma figura disruptiva já havia sido tomado por Milei”, acrescenta Caropresi.
A Utep apresentou uma lista de propostas para a Massa depois das primárias e tiveram retorno do candidato governista, que tem caído nas pesquisas e corre risco de ficar fora de um segundo turno. Dentre as propostas da Utep com as quais o candidato já anunciou comprometimento, está a abertura de um registro para lotear terras rurais entre famílias pobres.
Mais importante do que o apoio extra-oficial a Massa, é o repúdio a Milei. Isso expressam os próprios representantes da Utep. Prova disso foi a manifestação da Utep com centenas de pessoas na frente do Congresso Nacional no último dia 10, a qual Crusoé acompanhou.
O motivo do protesto era o apoio à aprovação parcial da restituição do IVA (imposto nacional sobre consumo), uma das políticas do Plan Platita de Massa que contou com apoio de Milei, como deputado, na Câmara naquele dia. Todos os representantes da Utep que subiram no palanque, incluindo Castro e Caropresi, mais criticaram a plataforma liberal de Milei do que defenderam as propostas de Massa.
“Não podemos esperar muito de nenhum dos favoritos. Agora, Milei é um louco e não tem a capacidade de governar o país, além de representar interesses não muito claros e ter um discurso bastante individualista. Ele se tornar presidente me preocupa muito”, diz Caropresi.
Segundo Castro, não há perspectiva de piquetes para antes do final das eleições, seja neste domingo ou em um eventual segundo turno, marcado para 19 de novembro. Afinal, os piquetes poderiam comprometer as chances de Massa.
Apesar de sua tendência peronista, a Utep realizou piquetes no primeiro semestre deste ano, contra Alberto Fernández, por contenção de repasses de subsídios alimentares. O sindicato e outras entidades piqueteiras também são responsáveis por repasses de subsídios financeiros do programa nacional Potenciar Trabajo — o Movimento Evita, sozinho, foi encarregado de 55% dos 416 bilhões de pesos do programa no ano passado.
No governo de Mauricio Macri, de centro-direita e não peronista, as manifestações foram, claro, mais intensas. Então organizados sob o nome Confederação dos Trabalhadores da Economia Popular (CTEP), antecessora da Utep, os piqueteiros tiveram vitórias, como a aprovação da Lei de Emergência Social, em 2016, que proibia cortes de gastos sociais por três anos.
“Todos os governos, independente de ideologia, precisam negociar com o Congresso e com as forças populares. Quando Macri assumiu, fortalecemos nosso trabalho nos territórios e construímos unidade”, diz Dina Sanchez, representante da Frente Popular Darío Santillán, outro grêmio da Utep.
“A Argentina responde quando há cortes de direitos. Mesmo as classes médias chegaram a participar de protestos em 2001[, no colapso do governo De La Rúa]”, acrescenta Sanchez.
Milei tem de aprender com essas experiências e, mais ainda, voltar seus olhos ao seu ídolo presidencial, Menem, falecido em 2021. Durante o início de seu mandato, antes dos estouros dos piquetes, Menem foi capaz de negociar e manter boas relações com os sindicatos tradicionais. E, mesmo com os piquetes, ele conseguiu se sustentar no poder até o final, graças também a uma repressão violenta.
Os representantes da Utep acreditam que um eventual presidente Milei tentará negociar com os sindicatos, mas duvidam de sua capacidade. Cabe ressaltar que Menem, apesar de liberal, era um peronista.
Ele tinha a estrutura do Partido Justicialista, de Perón, e uma experiência longa na política como peronista, que o ajudou na relação com os sindicatos. Menem estava na política havia quase duas décadas quando chegou à Casa Rosada e tinha sido governador de sua província, La Rioja, por quase dez anos em dois períodos não consecutivos.
Milei, por sua vez, é um outsider, como todos sabem, e tem apenas a experiência de menos de dois anos como deputado nacional. “Não sei se ele será capaz de negociar. Milei é uma pessoa totalmente desconhecida. Ele não tem nenhuma experiência de gestão. Não sabemos quem seriam os enviados dele para negociar conosco”, diz Castro.
O dirigente sindical já deixou o aviso ao libertário: “Seguramente, vamos nos mobilizar se houver medidas contrárias à população”.
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