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O que a gente perdeu quando perdeu Raul Seixas?

24.08.24 16:23

Há alguns anos, concebi uma ideia nunca concretizada de livro: uma espécie de inventário de modas, tecnologias e símbolos do século 20. Pensado como um compêndio de pequenos ensaios voltados a contemporâneos como eu que viram de relance todos aqueles itens, antes de serem soterrados pela Internet. Todos, esperava, seriam pano de fundo para debates mais profundos sobre como a sociedade mudou, dos boomers para os millenials.

O primeiro item definido era a limusine — esse tinha o roteiro mais definido. Aquela série de carros longos e provavelmente difíceis de manobrar, que representavam o luxo de uma elite presente até a década de 80, viu seu declínio na criação de um novo tipo de cidade. Para a nova geração de ricos, os carros longos foram sendo substituídos primeiro pelos esportivos e, em tempos mais recentes, pelos SUV que hoje monopolizam nossas ruas — ou seja: ser conduzido era arriscado e demodé, agora o poder é conduzir e domar 400 cavalos ou mais na mão. A limusine virou um símbolo kitsch e, ao menos nas ruas brasileiras, são vistas apenas como balada ambulante, para festa de crianças ou adultos.

O segundo capítulo definido era sobre Raul Seixas. Aí a coisa complicava — mas vamos tentar esse esforço.

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Oito dias depois de fazer um show em Brasília, Raul Seixas faleceu em São Paulo por pancreatite aguda, agravada por anos de alcoolismo no dia 21 de agosto de 1989, portanto há 35 anos e uns dias.

Uma geração inteira já vive sem ter visto o “Maluco Beleza” atuar (eu integro o grupo) e mesmo o bordão “Toca Raul”, que prometia lançá-lo para a eternidade, parece ele mesmo ir se decompondo. Paulo Coelho, seu braço-direito, vive uma vida discreta na Suíça, provavelmente enchendo os cofres locais com os royalties de seus livros. Marcelo Nova, seu outro braço-direito, ainda toca para um público saudosista junto a seu filho Drake, no Camisa de Vênus — ainda há público, mas não há jovens interessados em “Eu não matei Joanna D’Arc”.

E as músicas, claro, ainda permanecem. “Tente Outra Vez”, de hino motivacional a campanha do governo federal nos primeiros anos de Lula, ainda é a que mais rende royalties, segundo o Escritório Central de Arrecadação (Ecad); “Metamorfose Ambulante” virou expressão popular; e por aí vai.

Mas é olhar os 17 discos do cantor, com olhos de 2024, para entender do porquê ele ainda ser tão destoante. Mais que um corpo, o enterro de Raul Seixas levou junto no caixão uma maneira de escrever e pensar, pela música, um mundo mais profundo. Estava enterrada a coragem de questionar o universo.  

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Musicalmente falando, Raul não era nada muito especial. Não surpreende que, na sua biografia oficial, o garoto de 12 anos, repetente em colégios católicos de Salvador, preferisse ficar ouvindo os novos discos de rock and roll, então ainda dominado por artistas americanos (uma canção tradicional americana, gravada por Elvis Presley, acabou ganhando uma versão do seu fã brasileiro). Nos anos 60, antes de enveredar para trás do microfone, ele ouviu Beatles demais, Frank Zappa demais (Freak Out!, o disco de estreia do americano, inspirou seu primeiro disco, hoje raro) e gurus de todo tipo demais.

Eram os tempos da libertação — em todos os sentidos. De repente o homem está na Lua. De repente, é possível transar por prazer sem engravidar. De repente, há máquinas fazendo, em segundos, contas que humanos levariam dias. Há o Sgt. Peppers testando os limites do mundo. Há o Dark Side of The Moon contestando os rumos do mundo.

Então, nesse canto do mundo um tanto apartado dessa discussão, Raul Seixas finalmente nasce com um já clássico: “Krig-ha, Bandolo!”. E ele não faz feio: “Ouro de Tolo”, com sua crítica à vida desamparada da classe média brasileira (e refletindo o niilismo do filósofo Arthur Schopenhauer) é uma das melhores canções brasileiras em todos os tempos. No ano seguinte, Seixas e Paulo Coelho se unem para uma das mais enigmáticas canções brasileiras: a natureza de Deus? A vela que se acende? O amargo da língua? O início? O fim? O meio? Ninguém sabe ao certo o que Gîtâ quer de fato dizer.

A lista podia seguir indefinidamente: interpretações de sonhos, menções a personagens bíblicos, e críticas sagazes à ditadura — Capim Guiné, um obscuro rock com ares de baião lançada em 1983, é uma das várias que passaram batido pelos censores. Seu papel, defendia, era o de azucrinar a ditadura como uma “a grande mosca que perturba o seu sono”.

Seus exageros com o álcool tiraram sua vida com 44 anos — no mesmo momento em que o rock, grande catalisador dessa contestação vivida por Raul desde a infância, saía do seu apogeu. É como se o destino (ou alguma das forças ocultas tão famosamente cantadas por ele) impedissem Raul de ver o mundo perder a sua profundidade.

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A intenção aqui não é criticar as músicas atuais— mas uma tendência notável está em como os sucessos a coalhar as rádios e streamings brasileiros estão, cada dia mais, falando sobre aspectos tecnológicos e bastante específicos de nossa realidade hiperconectada.

Na semana que eu escrevo, uma das mais tocadas na playlist do Spotify só pode ser definida como “sertanejo de TI”: o romance do casal está em crise pois não há mais chamadas de vídeo e o amor oscila como uma conexão de Wi-Fi. Outra na lista é um piseiro bem mais animado, onde o refrão fala em Ver minha boca solteira, só pelos stories já é o terror / Imagina se tu ver, eu gemendo pra outro na hora do amor”. Um terceiro sucesso é um pagode do cantor Ferrugem, que fala em chorar revendo uma conversa de Whatsapp, acelerar a voz de um áudio, para concluir na indecisão do eu lírico: “Eu ja digitei/ Apaguei /Digitei de novo/ Eu ja te xinguei, enviei/ Apaguei pra todos.

Se há público, há produção musical para isso, e a conclusão é um tanto óbvia: a hiperconexão com aplicativos mudou não apenas a nossa forma de nos relacionar, mas também a de nos comunicar artisticamente. O Tinder, Instagram e o Whatsapp (e qualquer outra bugiganga eletrônica) não entraram apenas para plastificar nossos relacionamentos e comunicações — elas agora começam a dominar o que entendemos por arte.

Desde os tempos imemoriais, a música busca uma conexão entre o que temos de tangível e o que temos de intangível. A própria palavra “música” remete à “arte das musas”, divindades mitológicas gregas que cantavam sobre o passado para inspirar os rumos dos barcos das artes e da ciência. Dos neandertais que imitavam os animais para possuir sua alma às grandiosas fugas de Johann Sebastian Bach, dedicadas a Deus, essa tese parecia inabalável.

E o que Raul Seixas levou consigo parece simbólico da última geração onde essa conexão parecia existir: um humano, falho em seus atos, buscando entender a natureza que o cerca e questionando o que o torna parte do mundo. Atirando para todos os lados, com todas as armas que tinha (a Bíblia, a Thelema, o rock and roll, os gibis do Tarzan), sem medo de parecer brega ao falar de filosofia, amor e do comportamento da política que o cerca.

Talvez não adiante abrir o caixão de Raul Seixas buscando a resposta. Talvez ele não se encaixe mesmo no século 21. Ou, como diz uma das músicas mais tocadas nesta semana, “a sua conexão tá falhando.”

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  1. Se o que Raul (e tantos outros excelentes letristas que esse país já teve) não mais se encaixa no século XXI, azar o nosso, constatando que regredimos ao invés de avançar.

  2. Porta voz do novo em duros tempos Raulzito foi sem dúvida o maior artista de sua geração mas sucumbiu à incoerência da absoluta liberdade que no caso o matou tão precocemente .. a liberdade não pode permitir que o ser humano seja um suicida ... mas TOCA RAUL !!!

  3. Eu era muito nova quando a Ditadura estava instalada no Brasil, mas entendia a Esquerda no seu sentido de liberdade de expressão e, por isso gostava dos artistas da época. Esquerda era símbolo de novos tempos. Mas eles ficaram para trás . Não precisamos mais daquela luta, e hoje a esquerda se une para apoiar a Ditadura de Maduro, o Hamas ai mesmo tempo que lutam pelas minorias LGBTQIA+. Dá para entender essa “luta”

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