O Patriota do Caminhão e o país dos memes
Estou com covid. Passei incólume pelos anos mais duros da pandemia para contrair a peste neste penútimo mês de 2022. Com uma Astrazeneca e três Pfizer no meu sistema imunológico, os sintomas são leves: coriza, dor de garganta, uma tosse irritante que amainou neste quarto dia da doença. O pior é o cansaço. Não consigo...
Estou com covid. Passei incólume pelos anos mais duros da pandemia para contrair a peste neste penútimo mês de 2022. Com uma Astrazeneca e três Pfizer no meu sistema imunológico, os sintomas são leves: coriza, dor de garganta, uma tosse irritante que amainou neste quarto dia da doença. O pior é o cansaço. Não consigo escrever sem interrupção, pois depois de trinta, quarenta minutos no máximo, os olhos pesam e o corpo dói.
Releio minha coluna da semana passada e me assombro: como tive fôlego para tanto? Nem falo do trabalho de redação: é o discurso de Jair Bolsonaro sobre sua derrota eleitoral que me parece intransponível. Sob o sortilégio viral do SARS-CoV-2, eu jamais teria aguentado ouvir aqueles dois minutos infecciosos. Em sua versão atenuada por imunizantes, a Covid talvez traga uma nova forma de lucidez.
Não, romantizo: é apenas cansaço. Nenhuma lucidez, ao contrário. Ando irritadiço. Ou mais irritadiço do que normalmente sou. O cansaço, admito, é desde sempre meu modo default de ver as coisas. A covid veio potencializá-lo, e muito. Tento me manter atualizado com as notícias, mas está em curso uma transição de poder, e acompanhar o que acontece no governo que ainda está aí e no governo que virá é um esforço duro, que sobrecarrega minha exaurida atenção.
Começo a ler sobre a equipe econômica que está trabalhando com Geraldo Alckmin, me animo um pouco ao saber que Pérsio Arida está envolvido, mas em seguida leio o nome de Nelson Barbosa e sou acometido por um acesso brutal de tosse, sintoma que eu pensava ter superado.
Tomo conhecimento de um relatório de 65 páginas do ministério da Defesa sobre as urnas eletrônicas, mas meu entendimento anda muito embrulhado: não consigo entender se o documento consagra o resultado aferido ou se vem animar os doidinhos de vigília em porta de quartel. E então lembro que um governo apinhado de milicos em todos os escalões levou duas semanas para reativar o portal do SUS depois que este sofreu um ataque hacker cujo responsável permanece desconhecido. Por que, me pergunto, alguém ainda dá atenção a um relatório das Forças Armadas?
Estou cansado. Hoje vou tomar o caminho mais fácil. Vou falar sobre memes.
Na ressaca da eleição, o bolsonarismo nos ofereceu uma profusão de memes espontâneos. Alguns nem precisam ser acompanhados de frases debochadas: são autoparódicos. É o caso de dois ou três vídeos em que vemos patetas marchando, mastro da bandeira ao ombro, enquanto gritam “Brasiiiil” com empostação que eles devem imaginar tonitruante. Mas o meme dos memes é outro.
O símbolo incontestável da insurreição bolsonarista é o Patriota do Caminhão.
Se não for uma dessas almas felizes que se mantêm alheias às redes sociais, o leitor sabe de quem eu falo. É aquele sujeito vestido a caráter – camiseta e boné verde-amarelos – agarrado à dianteira de um caminhão. Ele foi filmado de dentro da cabine, da perspectiva do motorista, e de fora, por gaiatos que flagraram seu drama em andamento. Ao que parece, ele participava de uma barreira em uma estrada nos arredores de Caruaru, Pernambuco, quando resolveu se colocar na frente do único caminhoneiro que naquele dia foi para a estrada disposto a trabalhar (eventuais exageros e generalizações injustas deste texto devem ser creditados ao vírus). O caminhoneiro se recusou a parar, e o patriota se agarrou aos limpadores de para-brisa. Viajou sabe-se lá por quanto tempo nessa posição precária.
Na minha atual condição, o verbo soa quase indecoroso, mas não há como contorná-lo: a imagem viralizou, multiplicando-se em incontáveis variantes. O Patriota do Caminhão, como veio a ser conhecido, já cruzou pela frente da Torre Eiffel e das pirâmides do Egito, já se atracou na frente da Carreta Furacão e já ganhou uma versão em peças de Lego. A figura absurda do homem pendurado no caminhão já foi contrastada a imagens similares de Toy Story 3 e do Homem-Aranha de Tobey Maguire. Veículo e caroneiro foram trocados para representar a deputada Carla Zambelli, o gatilho mais rápido dos Jardins, fugindo para os Estados Unidos pendurada no nariz de um Boeing.
Sei que o Patriota do Caminhão já foi entrevistado, que ele tem nome, RG, CPF, profissão, que conta uma versão de sua história um tanto diferente da que esbocei acima, que está acabrunhado com a repercussão de seu feito. Não dou a mínima. Eu tampouco tenho interesse, por exemplo, no garoto polonês que de fato encantou Thomas Mann em uma temporada do escritor alemão em Veneza: quero saber só do Tadzio de Morte em Veneza. A ficção suplanta o menino real, assim como o meme do Patriota importa mais que o empresário pernambucano. (O SARS-CoV-2 esclarece que não tem qualquer responsabilidade por comparações estapafúrdias entre memes de rede social e clássicos da literatura moderna).
O Patriota do Caminhão consagrou-se como nosso Viking do Capitólio (não, o chapéu com chifres que ele usava não é de viking, mas o nome pegou). Como seu antecessor americano, o Patriota passou a representar a face mais ridícula de uma tentativa de golpe desarmada e descerebrada.
Imagino arqueólogos de um futuro muito, muito distante – se arqueologia e História existirem como campos de estudo viáveis em 3000 ou 4000 d.C. –, reconstituindo o banco de imagens de um artefato primitivo da segunda década século XXI, um iPhone ou Samsung cuja memória primitiva guarda imagens raríssimas de um tempo perdido. Frente à variedade de memes guardados nessa fonte ancestral, eles talvez concluam que, no século XXI, o Patriota do Caminhão foi o personagem central na história de uma obscura república da América do Sul. O Patriota do Caminhão será a síntese do que foi nosso tempo, nosso país.
Haveria emblemas piores para nossa época. Carla Zambelli de arma na mão, por exemplo.
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Comentários (10)
Ana Helena Alves Correa
2022-11-16 10:05:13Muito bom !!!!
Chiquinha
2022-11-14 23:16:44O Patriota do Caminhão só não está preso porque "ostentação de burrice" não é crime previsto no nosso Código Penal.
Leda Navajas Haim
2022-11-14 19:14:11Pena que pegou Covid, mas deve sarar logo com todas as vacinas. E muito bom seu texto. o cara do caminhão, não sei se pretendia, mas certamente vai ficar na história, pelo menos tragicômica desse nosso pais. Já se esgotaram os brinquedos alusivos à figura. Descanse pra voltar a escrever sem o cansaço, porque sua mente continua ótima.
Lucia
2022-11-14 11:09:38Não acho ridículo o Patriota do Caminhão. Acho ridículo o Lula viajando de jatinho da Qualicorp pro Egito. Faz um meme ai do Lula no jatinho!
Dina
2022-11-14 10:51:29O "Patriota do Caminhão " merece respeito .
JULIANA
2022-11-13 23:05:12Muito legal, Jerônimo! E melhoras pra vc🙏
Carlos Airton Santiago Cardoso
2022-11-13 16:17:42texto muito ruim. falta de assunto.
MARCOS ROSA
2022-11-13 14:17:20Parabéns Jerônimo por esse texto brilhante, que sintetiza e retrata, perfeitamente, as nossas mazelas. Até quando suportaremos?
Martha Monteiro Rebello
2022-11-13 14:09:40Todo fenômeno de massa, e esse é um deles, merece ser, pelo menos, olhado com respeito e seriedade. Fica a dica para os jornalistas.
KEDMA
2022-11-13 13:25:09Mesmo com COVID foi muito bom ler seu texto. Melhoras para você, Jeronimo.