Nova ‘boiada ambiental’: canetada do Ibama põe em risco o paraíso de Abrolhos
O Parque Nacional de Abrolhos (foto), no litoral sul da Bahia, é uma área de conservação que abriga o maior banco de corais e o mais importante berçário de baleias jubartes do Atlântico Sul. Por causa da inestimável relevância ambiental do arquipélago de mesmo nome, o Ibama criou, em 2006, uma zona de amortecimento em...
O Parque Nacional de Abrolhos (foto), no litoral sul da Bahia, é uma área de conservação que abriga o maior banco de corais e o mais importante berçário de baleias jubartes do Atlântico Sul. Por causa da inestimável relevância ambiental do arquipélago de mesmo nome, o Ibama criou, em 2006, uma zona de amortecimento em volta do parque. A legislação proibiu, por exemplo, a exploração de petróleo e gás em uma área de 75 mil quilômetros quadrados, já que qualquer vazamento de óleo pode ser devastador para o ecossistema. Nesse faixa em volta de Abrolhos, o licenciamento de atividades econômicas com alto potencial de impacto passou a ter um controle mais severo. As restrições desagradaram a empresários e prefeitos da região, que viram na proteção extra garantida ao parque um limitador do desenvolvimento econômico. Como consequência, a criação do anel de proteção de Abrolhos virou o centro de uma disputa que se arrastou por 16 anos. Na última segunda-feira, 21, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, assinou uma portaria que simplesmente anulou a criação da zona de amortecimento.
Rica em petróleo, gás e em algas calcárias, que são um fertilizante de alto valor, a área de Abrolhos é alvo da cobiça de empresários há décadas. A decisão do governo Jair Bolsonaro de revogar a portaria sem instituir nenhum outro mecanismo formal de proteção no entorno do parque é alvo de duras críticas de especialistas, como geólogos marinhos e oceanógrafos. Questionado por Crusoé sobre a decisão do Ibama, o Ministério Público Federal informou que vai analisar o caso. O procurador da República José Gladston, que atua na Bahia, pedirá informações ao governo sobre a medida.
“A revogação da zona de amortecimento de Abrolhos é mais uma boiada do governo e está dentro da linha de ação de desmontar toda a política ambiental já consolidada”, afirma o geólogo Ruy Kikuchi, professor de Oceanografia da Universidade Federal da Bahia, a UFBA. Especialista em corais e ambientes marinhos tropicais, ele critica a falta de ação do governo federal na proteção da região. Kikuchi lembra que a discussão sobre a zona de amortecimento se arrasta desde o início dos anos 2000, quando começaram os estudos para a preservação do entorno de Abrolhos.
Em 2006, o Ibama criou a área por meio de uma portaria, mas municípios próximos do parque questionaram a medida na Justiça, com o argumento de que a regra era muito restritiva e poderia limitar o desenvolvimento econômico das cidades. A pressão mais forte à época veio de criadores de camarão, que queriam instalar na área o maior projeto de carcinicultura do país. Em primeira instância, a Justiça Federal anulou a criação da zona de amortecimento, com o argumento de que a medida só poderia ser implantada a partir de um decreto presidencial, e não por uma portaria assinada pelo presidente do Ibama. À época, o instituto recorreu, mas não conseguiu reverter a decisão – o Ministério do Meio Ambiente estava sob o comando de Marina Silva.
Neste mês, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, manteve o entendimento da primeira instância de que cabe ao presidente da República, e não ao comando do Ibama, formalizar a proteção do parque. Agora, com a revogação do decreto que criava a faixa de proteção, a querela judicial até perde a razão de ser -- até porque, a partir da canetada do Ibama, a zona de amortecimento simplesmente deixa de existir do ponto de vista legal. Poderia ser apenas uma filigrana jurídica, não fosse a resistência do governo de Jair Bolsonaro em instituir políticas ambientais efetivas. “Se isso fosse prioridade para o governo, o presidente poderia assinar um decreto para resolver a questão. Mas abriram uma porteira para várias outras ameaças a esse ecossistema, que é único no Atlântico Sul”, diz Ruy Kikuchi. Segundo o pesquisador, os estudos que embasaram a criação da zona de amortecimento comprovaram que eventuais vazamentos de petróleo no entorno do parque poderiam ter grande impacto nos recifes de corais.
“Quando se cria uma área protegida, é importante que haja um entorno com grau de proteção menor, mas que sirva como uma segunda linha de defesa. Como Abrolhos é uma área de recife de corais muito sensível, foi criada essa zona de amortecimento”, explica o oceanógrafo Agnaldo Silva Martins, do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo. “Nessa região de Abrolhos, a zona de amortecimento é especialmente grande porque recifes de corais são o ecossistema com a maior biodiversidade no ambiente marinho. Uma vez destruídos, os corais não se reconstituem facilmente, e isso pode levar milhares de anos ou não acontecer. Revogar formalmente a zona de amortecimento é grave, porque ficará muito fácil instalar qualquer empreendimento, como os de petróleo", critica Martins.
Mesmo com a decisão judicial que suspendeu liminarmente a proteção, não houve a implantação de empreendimentos no local, principalmente por causa da insegurança jurídica que o processo judicial conferia. Agora, a flexibilização oficial do licenciamento na zona de amortecimento pode abrir brechas para outras atividades, além da exploração de petróleo. A região em volta do Parque Nacional de Abrolhos é rica em algas calcárias -- um produto de alto valor para a indústria em razão da alta concentração de carbonato de cálcio, um fertilizante poderoso para a agricultura.
É grande a pressão econômica pela liberação da mineração de carbonato e a extinção da zona de amortecimento abrirá as portas para a exploração do produto. “O ecossistema das algas calcárias também é muito sensível e com grande biodiversidade. Existe muita pressão econômica para que haja essa exploração”, diz o oceanógrafo Agnaldo Martins. Além de promover a correção de pH, as algas calcárias são riquíssimas em micronutrientes, capazes de aumentar a resistência das plantas – por isso, suscitam tanto interesse na agricultura.
Leilões de áreas de exploração de petróleo na região próxima a Abrolhos suscitam polêmica desde o início dos anos 2000. Frequentemente, organizações ambientais têm que fazer pressão sobre a Agência Nacional do Petróleo, a ANP, para evitar a licitação de blocos. Em 2020, a agência tentou licitar áreas na região, mas, diante dos questionamentos da sociedade e da consequente insegurança jurídica, não houve interessados. O mesmo havia ocorrido em 2019, quando a área de exploração próxima a Abrolhos não atraiu empresários.
Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia, Zelinda Leão é uma das pioneiras nas pesquisas em Abrolhos. Nos anos 1970, ela fez doutorado em geologia marinha nos Estados Unidos e se dedicou a estudos sobre o arquipélago. “Depois de muito trabalho de pesquisa, cientistas e pesquisadores concluíram sobre a necessidade de se criar a zona de amortecimento do Parque Nacional de Abrolhos, para proteger a biodiversidade deste ecossistema marinho de relevante importância para a Amazônia Azul Brasileira. E, agora, uma simples assinatura pode destruir todo esse trabalho”, lamenta a pesquisadora. “Durante explorações de petróleo no mar, é impossível evitar acidentes. Um derrame de óleo, por menor que seja, será um desastre para os recifes de corais de Abrolhos”, prossegue.
Procurado por Crusoé na última terça, 21, o Ibama respondeu que caberia ao Instituto Chico Mendes, o ICMBio, se manifestar sobre a situação. Três dias depois, a assessoria do ICMBio repassou a responsabilidade de volta para o Ibama. Nenhum dos dois órgãos respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem. A Casa Civil da Presidência da República informou que não tem, sob sua alçada, qualquer estudo ou proposta sobre o tema.
Pesquisadores e representantes de organizações não-governamentais com atuação na região prometem se mobilizar contra a canetada do Ibama. “O parque precisa de uma zona de amortecimento que o proteja de atividades danosas à sua função principal, que é proteger a biodiversidade. A sociedade tem que se mobilizar para que a proteção seja restituída -- se não for por portaria do Ibama, que seja por decreto presidencial”, defende o biólogo Guilherme Dutra, diretor da ONG Conservação Internacional.
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Comentários (8)
Elcio Morais de Oliveira
2022-03-30 17:34:09Mais um legado lesivo desse governo dominado por incompetentes e corruptos. Outubro vem aí. Esperaremos.
Marcello
2022-03-28 12:43:28Lembra trecho da música Que país é este, do Legião Urbana: "Ficaremos ricos quando vendermos as almas de todos nossos índios num leilão". Coisas de governos ordinários!
José Leonardo
2022-03-28 11:40:25Outro absurdo! Há que se ressaltar que há no Brasil centenas de jazidas de Carbonato de Cálcio (calcário agricola) em terra firme, com menor custo de exploração e que são suficientes pra atender à demanda, quase que indefinidamente!
Branda
2022-03-28 11:22:08Enquanto o dinheiro for a coisa mais importante que existe, seguiremos firmes no objetivo de transformar o Brasil em planícies estéreis e desérticas. É uma tristeza ver os órgãos responsáveis pelo meio ambiente serem os algozes deste. O sentimento de impotência diante da decisão ambiciosa e comprada de ignorantes é imenso.
Amyr GF
2022-03-28 09:47:37o ser humano que destrói seu habitat e os europeus fizeram há décadas e agora brigam para preservar o dos peixes que deve ser preservado sim mas de forma racional não sob ideologias criminosas que protegem animais e massacram seres humanos basta ver a Ucrânia hoje.
Jandira
2022-03-28 08:38:42Nenhuma novidade, visto que a Canalhice faz parte do DNA deste desgoverno dos infernos. Preservar não enche matulão...
Vilson
2022-03-28 07:59:55Precisamos nos mobilizar e pressionar contra mais esse absurdo.
JOAO
2022-03-28 07:44:50Pessoal, bora pressionar pra manter a zona de preservação!!!