O general agora é crítico de arte
Ao condenar uma cena isolada do filme A Fúria como estímulo à violência, o general confunde a representação de um assassinato com a incitação a esse crime
O governo Bolsonaro tem, afinal, um esteta!
Contemple, leitor, o quadro de um homem que, embora devotado à promoção do bem público, não descuida do cultivo do espírito em suas escassas horas de repouso. Estava esse luminar da cultura nacional recolhido à biblioteca do Palácio Jaburu, cotejando um fragmento da Poética de Aristóteles recém descoberto entre os papiros de Oxirrinco com a edição consagrada do texto grego pelo filólogo alemão Rudolph Kassel, quando chega uma mensagem urgente ao tablet no qual ele estava lendo a versão digitalizada do manuscrito. Um companheiro de armas e letras alertava-o para mais um atentado que a esquerda bárbara cometia contra a arte nacional. Tratava-se de um vídeo breve no qual um doppelgänger do presidente tombava durante uma motociata, vítima de assassinato. Ao ver o valoroso peito de Jair Messias Bolsonaro ferido de morte por alguma imaginação vil, nosso bom homem público buscou consolo nos versos imortais de Keats. “Beauty is truth, truth beauty”, recitou em voz baixa e consternada, certo de que naquela cena bruta não havia nem beleza nem verdade. Superou a repulsa inicial para examinar com olho analítico a composição da imagem. Como suspeitara, não se via ali a proporção áurea. Nosso esteta foi então ao Twitter para compartilhar sua avaliação definitiva do vídeo:
– Isso não é arte!
A cena acima toma várias liberdades poéticas. Não estou certo, por exemplo, de que exista uma biblioteca no Jaburu (ou de que, em existindo, essa biblioteca seja frequentada). Mas a citação do vice-presidente Hamilton Mourão está tal e qual aparece no seu Twitter, incluindo o ponto de exclamação:
– Isso não é arte!
O general referia-se a um trecho de A Fúria, filme que o diretor Ruy Guerra pretende lançar no ano que vem. Uma nota da produção informa que a cena está fora de contexto, e que sua divulgação não foi autorizada. Só poderemos avaliar as qualidades e defeitos de A Fúria quando ele estiver em exibição, decerto com as duas horas de duração, pouco mais ou menos, que são padrão das salas de cinema. No entanto, bastaram poucos minutos não-editados do filme para que Mourão decretasse:
– Isso não é arte!
Concedo que Mourão não saberia, no momento em que escreveu suas considerações, que aquele clipe era parte de um filme ainda não concluído. O tuíte, no entanto, parece presumir que o vídeo breve é tudo o que há para ver: "Está circulando nas redes um 'filme' que demonstra o suposto assassinato do nosso presidente”, escreveu o vice-presidente. Como ninguém supõe que Bolsonaro tenha sido baleado em uma motociata, suponho eu que “suposto” aqui quer dizer “fictício”. Mourão, aliás, não parece entender a natureza ficcional da cena, o que é uma limitação grave para quem tem a pretensão de discernir o que é ou não arte. Menos graves mas também imperdoáveis são as aspas com que ele cercou a palavra “filme”, em um esforço malogrado para ser irônico. O que me permite parafrasear a frase do general:
– Isso não é arte retórica.
É a indignação, e não a ironia, que dá o tom da crítica de Mourão. "Repudio veemente qualquer ato que possa estimular a violência a quem quer que seja”, diz o general tuiteiro já na primeira frase. Nas eleições de 2018, o militar que agora se diz avesso à violência não teve pejo em se juntar ao sujeito que, como deputado, havia pedido o fuzilamento de um presidente da República e afirmado que uma colega de parlamento era feia demais para ser estuprada – para lembrar só duas das delicadezas que fizeram sua fama. Em todas essas declarações, Jair Bolsonaro decerto estava empregando a tal “linguagem figurada” sobre a qual vem falando recentemente. Mas, de acordo com seu vice-presidente, um filme que nem filme é ainda representa um perigo muito literal.
– Isso não é arte!
Ao falar em estímulo à violência, Mourão confunde a representação de um assassinato com a incitação a esse crime. Ele está muito perto de afirmar que Crime e Castigo incentiva jovens a assassinarem velhinhas. O tom furibundo do tuíte deve-se, claro, ao fato de que a vítima do “suposto assassinato" é uma figura que, do terno ruim ao corte de cabelo brega, imita o estilo de Bolsonaro. Mas alguém terá se sentido motivado a cometer um atentado contra o presidente só por que viu um vídeo curto no Twitter? Duvido. Em 2010, a 29a Bienal de Arte de São Paulo expôs desenhos do pernambucano Gil Vicente (homônimo do grande poeta e dramaturgo português) nos quais o próprio artista aparece assassinando figuras da política nacional e internacional. Em uma dos quadros, ele atira na cabeça de Fernando Henrique Cardoso; em outro, degola Lula. Essas obras são arte? Eu diria que são má arte, não porque representem atos violentos contra pessoas reais, mas porque o traço realista grosseiro carrega um pesado elemento kitsch. Diante delas, o visitante terá sentido vontade de xingar os curadores da bienal, não de matar FHC ou Lula. Houvesse visitado essa bienal e contemplado os desenhos de Gil Vicente, será que Mourão ainda diria que…
– Isso não é arte!
…ou será que não se daria ao trabalho, já que as vítimas retratadas não são de seu grupo político? No final de seu tuíte furioso, Mourão apela a altos princípios cívicos para justificar sua condenação peremptória ao filme, mas os termos não são dos mais felizes: "Isso [o vídeo com a encenação de assassinato] é um ato imoral à Nação e ao Governo Federal”. Nem vou questionar a moralidade do governo de que Mourão faz parte, pois esse poço é profundo. Importa antes observar que a moral nem sempre constitui uma régua apropriada para julgar o valor artístico. Algumas das melhores obras da arte e da literatura ofenderam os padrões morais de seu tempo. As Flores do Mal, Madame Bovary e O Amante de Lady Chatterley estão entre os exemplos mais lembrados. Todos os três foram censurados, e aí se vislumbra o perigo contido nos preconceitos estéticos do vice-presidente. Nunca é bom sinal quando um mandatário ou vice-mandatário se arvora em árbitro do que é ou não é arte. Não se deve esquecer que, tal como Bolsonaro, o general Mourão admira a ditadura que decretou que Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, não são arte.
***
Não foi só o ponto de exclamação no tuíte de Mourão que me incomodou. Encontrei três pontos de exclamação preocupantes na decisão em que Alexandre de Moraes, como presidente interino do TSE, proibiu bolsonaristas de associarem Lula ao PCC e ao assassinato de Celso Daniel. Mas isso será assunto para a próxima coluna.
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Comentários (10)
Marilena Cavalheiro
2022-07-26 22:26:53Jerónimo vc poderia encontrar um assunto mais relevante?
Jose Odecio Adriano
2022-07-26 10:24:49Está faltando material para esta revista?
Paulo
2022-07-25 19:18:36Sofisticado o texto. A arte brasileira é, de fato, privilégio da esquerda. Sobre ter qualidade é questão de debate. E alguns dirão que qualidade é um conceito ultrapassado. Mas é fato que dos artistas de esquerda não virá uma crítica contundente aos crimes .... da esquerda. E, acreditem, elegantes comentaristas e sábios leitores, são bem numerosos. Que tal um filme com o assassinato de um destes muitos ditadores que a sinistra idolatra né. Só um cuidado, não brinquem com certos profetas ok?
Alberto de Araújo
2022-07-25 17:21:05Vamos esperar a manifestação do autor deste espaço no que encontrou nos três pontos de exclamação. Infelizmente a arte é privilégio de poucos. Não se pode nem contesta-la. Ah, essa liberdade de expressão é uma incógnita.
Fernando
2022-07-25 14:17:02Excelente texto, muito pertinente.
Edvaldo Ramos e Sousa
2022-07-25 13:30:07Ô Jerônimo, pega leve. General brasileiro é da mesma turma do vampiro brasileiro do Chico Anísio.
Geraldo de Freitas
2022-07-25 10:52:18Só gostaria de saber se fosse o outro lado ,como seria a reação dos esquerdistas. Como o meu antagonista e a minha Crusoe, que eu quase não reconheço mais ,reagiria ?
Marco Antonio Bosculo Pacheco
2022-07-25 10:52:11Desculpe, mas não é arte mesmo!!!! Aliás, é estupidez pura!
LUIZ CARLOS ALEIXO
2022-07-25 10:48:41Fantástico esse texto de Jerônimo Teixeira. Não vou colocar o ponto de exclamação, embora com vontade.
Renato
2022-07-25 10:32:22O Sr. Jerônimo Teixeira, autor desse texto, notoriamente nutri algum sentimento negativo em relação ao Vice-presidente, o qual tem todo o direito de expressar as suas opiniões no seu twiter. Esse texto não tem sentido nenhum e expressa o achismo do autor. Texto mal intencionado, com segundas intenções. Crusoé acorda!!