Lula mostra sua tromba antidemocrática
A arquibancada improvisada destinava-se às senhoras de idade. Protegidas do sol forte por um toldo, elas ocupavam três filas de cadeiras de praia, todas voltadas para o mesmo lado, como se esperassem um acontecimento histórico a se desenrolar na via em frente. Tinham todas o semblante sério, severo, compenetrado. À volta das cadeiras, homens de...
A arquibancada improvisada destinava-se às senhoras de idade. Protegidas do sol forte por um toldo, elas ocupavam três filas de cadeiras de praia, todas voltadas para o mesmo lado, como se esperassem um acontecimento histórico a se desenrolar na via em frente. Tinham todas o semblante sério, severo, compenetrado. À volta das cadeiras, homens de meia idade conversavam em pequenos grupos. Todos vestiam verde e amarelo, e alguns embrulhavam-se em bandeiras do Brasil. Reparei que uma delas era fechada em torno do pescoço com velcro. Algum pequeno empreendedor terá descoberto uma oportunidade de negócios na loucura nacional: configurar bandeiras não para serem penduradas em mastros, mas para serem vestidas como capas de super-herói.
Do outro lado da rua, chamada Sete de Setembro, o Comando Militar do Sul, objeto do olhar vigilante das vetustas senhoras, resplandecia sob o sol da indiferença.
A cena que descrevo se deu no dia 29 de dezembro, quinta-feira, em Porto Alegre, cidade onde passei as festas de fim de ano. Horas depois, Jair Bolsonaro jogou a toalha golpista na mais patética de suas lives, e já no dia seguinte um avião da FAB o levou para Orlando. No domingo, 1o de janeiro, sob o sol festivo de Brasília, uma multidão saudou a passagem do novo presidente – novo, porém velho: é seu terceiro mandato – no caminho da Catedral de Brasília até o Congresso, onde se deu a cerimônia de posse. O triunfalismo que marcou o evento (e sua cobertura na imprensa) quer nos fazer crer que o Brasil está reencontrando sua verdadeira alma, representada em sua diversidade pelos oito simpatizantes do PT que, na feliz ausência de Bolsonaro, passaram a faixa ao presidente petista. As senhoras encarquilhadas em frente ao quartel não teriam lugar nessa reinauguração nacional.
No momento em que passei pelo acampamento de patriotas, um alto-falante tocava uma versão muito brega, em português, de Hallelujah, canção de Leonard Cohen. O mesmo sistema de som terá transmitido os discursos de vitória do inimigo? Parece que não: segundo informa a imprensa local, o lugar se esvaziou no fim de semana. Entre os poucos remanescentes, ficou um vereador de Nova Santa Rita que agrediu uma equipe de TV na terça-feira, 3.
E assim se desenrolou meu único contato direto com a Horda Canarinha, tema de alguns textos que publiquei aqui no ano passado. Eu disse “contato direto”? Não é o modo apropriado de definir a experiência. A caminho do antigo cais onde hoje está instalado um shopping a céu aberto (novidade para mim, gaúcho radicado em São Paulo há 18 anos), passamos, minha família e eu, por dentro do acampamento – mas passagem não chega a ser contato. Haveria lá cem patriotas, pouco mais ou menos, e ninguém pareceu notar meu grupo.
Na sua coluna em O Globo, em dezembro, Pablo Ortellado observou que o bolsonarismo perdera a ilusão de falar pelo povo – e que se convertera em um movimento isolado, sectário. Foi minha sensação no acampamento porto-alegrense. Não havia ninguém cantando ou gritando palavras de ordem. Nenhum manifesto ou panfleto nos foi entregue. Nem os cartazes espalhados pelo local destinavam-se a trazer gente nova para a causa golpista: boa parte deles dirigia-se às Forças Armadas, chamadas a corrigir uma fantasiosa fraude eleitoral. As senhoras assentavam-se no entorno do comando militar para demarcar território, não para convencer os passantes da justiça de suas reivindicações.
Fiquei até grato que nenhum militante verde-amarelo tentasse me recrutar para a Horda Canarinha. Não gosto de falar com estranhos (péssima qualidade para um jornalista, reconheço). O que não impede os estranhos de puxarem conversa comigo. É como diz meu aforismo favorito de Karl Kraus: "Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois dedos de prosa comigo. Daqueles a lei me protege". Em Porto Alegre, como na Viena de Kraus, não há lei que coíba os chatos: no mesmo dia em que visitei o acampamento golpista, logo que encontrei meu lugar no corredor lotado de um ônibus urbano, um passageiro veio me falar de como era boa a vida durante a ditadura militar.
Era um senhor negro com uma barba dez anos mais grisalha do que a minha (sei de sua idade, 64 anos, porque ele a usou como argumento de autoridade). Vestia camisa vermelha, bermuda e chinelo de dedo. Ao contrário do que muitos leitores terão imaginado, esse admirador do regime de 1964 não era bolsonarista. Expressou vivo desprezo pelo presidente que estava de malas prontas para fugir antes de encerrar o mandato. Tampouco era petista, embora tenha concedido pontos a Lula pela inclusão de pobres na universidade. Seu prognóstico para o governo que começaria dali a poucos dias: por melhores que fossem suas intenções, seria imobilizado pelo sistema político; desse impasse, nasceria o caos, e então os generais se veriam obrigados a tomar o poder. O que seria ótimo, acreditava meu interlocutor, inebriado de nostalgia (e de alguma coisa a mais, a julgar por seu bafo). Ah, a ditadura, tempo idílico no qual não se falava nos tais direitos humanos e ninguém tinha o celular roubado na rua (até porque não existia celular então, pensei em dizer, mas não disse).
Democracia é um sistema bonito mas não funciona no Brasil, pontificava meu interlocutor fortuito. No ano passado, celebrou-se uma pesquisa do Datafolha na qual a aprovação do sistema democrático entre os brasileiros chegava perto dos 80%. Calhei de encontrar um digno representante da minoria que prefere a ditadura – um sujeito muito confuso em suas ideias políticas, mas cuja confusão ainda me parece preferível à hipocrisia e à impostura.
Hipocrisia e impostura: é tranquilo identificá-las no governo que se foi e nos seus apoiadores que ficaram por aí dando safanões em cinegrafistas de TV. Acusar os mesmos atributos no governo que entra já exige o esforço de nadar contra a corrente celebratória que desde a posse vem repisando clichês sobre restauração da democracia, derrota do fascismo e retorno à normalidade. Mas já na posse do atual presidente ouvimos os tais "ataques à democracia” (outro clichê) que pareciam apanágio exclusivo de seu antecessor.
“Democracia para sempre!”, proclamou Lula no Congresso. No parlatório, porém, ele se saiu com esta delicadeza:
“Infelizmente, muito do que construímos em 13 anos foi destruído em menos da metade desse tempo. Primeiro, pelo golpe de 2016 contra a presidenta Dilma. E na sequência, pelos quatro anos de um governo de destruição nacional cujo legado a História jamais perdoará.”
A pessoa plural da primeira frase abriga o próprio Lula, seu governo, seu partido – e sua sucessora. Na conta do muito que eles construíram, portanto, entra sem ser convidada a devastação econômica e social produzida pelo governo de Dilma Rousseff, cujo espectro assombrará o atual governo enquanto ele não demonstrar um compromisso sério com a responsabilidade nas contas públicas (e espero que isso não signifique “até 2026”). Mas não vou me deter sobre matéria econômica. Estou mais interessado nas implicações institucionais dessa fala. Que o Lula e o PT tenham veiculado, em 2016, a farsa de que um golpe estava em curso no parlamento ainda podia ser perdoado como propaganda política. Que um chefe de Executivo diga o mesmo é um acinte aos demais poderes.
Não é trivial o que um presidente diz quando diz “golpe”.
O presidente Lula diz que foi espúrio um processo político previsto na Constituição. O presidente Lula diz que o Congresso legitimamente eleito em 2014 cometeu um crime contra a democracia. O presidente Lula diz que o STF foi cúmplice ativo do crime, na pessoa de Ricardo Lewandowski – um ministro indicado pelo próprio Lula –, que presidiu o processo no Senado. O presidente Lula diz que Michel Temer – cacique do MDB, partido que está alegremente de volta ao poder, com três pastas importantes no ministério recém-empossado – exerceu a presidência de forma ilegítima.
Essas são só as implicações imediatas da mentira do golpe. Se considerarmos que os atos de um presidente ilegítimo também carecem de legitimidade, seremos obrigados a concluir que Alexandre de Moraes, nomeado por Temer, não deveria ter assento no STF – e nem no TSE, cuja atuação nas eleições do ano passado foram elogiadas por Lula. O novo governo criou uma inédita Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, vinculada à AGU, com o propósito de “combater a desinformação sobre políticas públicas”. Sugiro que o procurador comece seu trabalho enquadrando o presidente.
Comecei pelas anciãs patriotas de Porto Alegre e cheguei a Lula. Comparações entre Lula e Bolsonaro, ou entre lulismo e bolsonarismo, costumam ser acusadas de “falsa simetria”. Minha palavra final é sobre esse conceito tantas vezes empregado para criar falácias quando pretende combatê-las. Vou arriscar uma analogia zoológica: afirmar que a borboleta e o elefante têm tromba não equivale a dizer que o lepidóptero e o paquiderme são na verdade o mesmo animal.
Lula e Bolsonaro, patriotas e petistas não terão trombas do mesmo tamanho, cor ou forma – mas são todos trombudos.
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Comentários (10)
NELSON VIDAL GOMES
2023-01-09 15:17:49Pode-se falar de Lulismo mas não de Bolsonarismo. Este foi o termo criado pelo PEB- Partido das Empreiteiras e dos Banqueiros (nome fantasia PT) para obscurecer o antipetismo e os nobres sentimentos dos que amam mais o Brasil do que a um partido. Que Deus nos ilumine a todos e abraços fraternos em agnósticos e ateus! Namastê!
Rosangela Maria Halfeld Bonicontro Miranda
2023-01-09 11:22:06"Tá dominado, tá tudo dominado"
VARLICE
2023-01-09 11:19:29Muito boa sua análise. Sempre falei que Bolsonaro e Lula são faces de uma mesma moedinha falsa de três reais. E há quem a compre e a defenda! Uns até se dispõe a morrer por ela.
Marcos
2023-01-09 09:14:13Excelente crônica! Achar que Lula é um democrata apenas porque Bolsonaro é um facistóide, é um erro. São dois seres corruptos, apoiados em parte por um núcleo fanático, que perdoam tudo que seu mestre mandar.
Guilherme Kahn
2023-01-08 23:08:06A Crusoé foi vendida para Jovem Pan ? A linha editorial é praticamente a mesma. Agora só falta o patrocínio das Lojas Havan
Fabio
2023-01-08 22:08:14Nossa! A Crusoé deveria se associar à Jovem Pan! Que jornalismo de merda! Na redação vocês se vestem de verde e amarelo, com a camisa do Neymar?
André
2023-01-08 19:28:42Prezado Jerônimo, ao falar sobre o cidadão Negro, vc mencionou e descreveu uma pessoa que não é nem a favor do Lula ou do Bolsonaro, com confusas idéias políticas. Esse é o problema do Brasil. A maioria do povo está confusa pois o sistema capenga, falho e corrompido brasileiro nos legou as 2 antas uma que já foi embora e outra q começa a (des)governar nosso País. Por que tivemos q escolher entre essas 2? Como se deu a sucessão de fatos implantados pelo STF para soltar Lula e torná-lo elegível?
Patrick
2023-01-08 17:10:29Faltou mencionar que o bolsolulismo venceu as eleições no país retrógrado.
Iara Belli Passos
2023-01-08 15:40:47"Senhoras encarquilhadas" fazem parte da sociedade que no passado lutaram pela tal "Democracia" hoje tao na moda mas que anda na boca da maioria que nao sabe defini-la.
Flavio
2023-01-08 15:07:13“Senhoras encarquilhadas”. Por que sempre no sentido pejorativo ao comentar sopre essas pessoas?