Foto: Wikimedia Commons

Luiz Gama: um dos inventores do Brasil

13.05.23 08:25

Neste 13 de maio, o Brasil completa 135 anos da Lei Áurea, que aboliu legalmente a escravidão. Em um país que nunca completou o serviço de provisão de oportunidades para a ampla liberdade de seus cidadãos, a data nos leva à reflexão a respeito do que constitui nossa identidade nacional. Nesse contexto, penso que o resgate do legado de Luiz Gama (foto) pode nos ajudar a pensar um Brasil onde a liberdade seja efetivamente desfrutada por todos.

A unidade e a ideia de nação brasileira deu-se forçadamente através de um inusitado Império, aos moldes europeus, nos trópicos. O nascimento de um novo país não é resultado de um processo iniciado e finalizado apenas no simbólico (e inevitável) Grito do Ipiranga em 07 de setembro de 1822. Uma série de esforços foram impelidos a fim de garantir a unidade entre distintas e distantes províncias que, muitas vezes, tinham maior facilidade de trocas e contatos com a antiga metrópole do que com o Rio de Janeiro.

Havia ainda a questão fundamental da cultura e da identidade. O novo país era um barril de pólvora, formado por povos diversos em condições socioeconômicas radicalmente diferentes, sendo que a maior parte da população local era escravizada ou descendente daqueles que foram sequestrados, atravessaram o oceano e, por aqui, forçadamente trabalharam em todos os tipos de atividades.

É neste novo país, em 1830, que nasceu, livre, Luiz Gama. Homem cuja breve vida foi digna de uma epopeia cinematográfica — que de fato virou filme. Advogado, jornalista, escritor, autor de vasta obra, membro da maçonaria e de clubes abolicionistas, sarcástico, contundente, sensível e tenaz.

Muitas atividades e adjetivos podem ser atribuídos a Luiz Gama. A apresentação que o jornalista Laurentino Gomes fez no terceiro volume de sua monumental obra Escravidão é bastante justa: Gama é o precursor. Denunciava políticos, jornais, senhores de escravos, violações do que hoje chamamos de direitos humanos. Pesava sua atuação e letras a favor da liberdade dos seus e contra o estigma da cor da pele: o racismo.

O dono da grande voz abolicionista foi levado precocemente pela traiçoeira diabetes em 1882 e não assistiu à abolição em 13 de maio de 1888, após cinco anos e nove meses, que certamente foram mais difíceis ao povo, órfão da sua luta.

A família imperial postergou o máximo que pôde o fim da escravidão. Curiosa e erradamente, contudo, levou um crédito quase exclusivo pela abolição. Na verdade, a Lei Áurea assinada pela princesa Isabel não atendeu a boa parte das reivindicações abolicionistas. Não houve garantia àqueles que deixavam de ser escravos de nenhum dos pressupostos de inclusão, através da educação, qualificação e tutela, que Gama defendeu ao longo de sua vida.

Para a população descendente daqueles que foram sequestrados da África e aqui foram estabelecidos, após a festa do dia da abolição veio uma grande ressaca que, em muitos aspectos, dura até hoje. Certamente a ausência de cidadania que o Brasil do século 21 dispensa à população negra aprofundaria a inquietude de Gama, se estivesse vivo.

Os métodos da historiografia contemporânea pressupõem uma sistematização de pesquisas, que levem em conta e priorizem a “longa duração”, ideia preconizada por Fernand Braudel. A teoria do historiador francês é de suma importância para compreender e desbravar as querelas que envolvem causas, efeitos e permanências, concernentes ao Brasil contemporâneo. Para tal compreensão é também relevante evocar outro historiador, Roger Chartier, cuja noção da história é entendida como um sistema de crenças, de valores e de representações própria a uma época ou grupo.

Desta forma, fica ainda mais proeminente notar que a construção de ideia de Brasil foi feita, em especial, por aqueles que articularam e levaram a cabo a independência do Brasil e que estavam ligados à família imperial, com destaque para pessoas como José Bonifácio e instituições como o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB).

Obviamente, a escolha de alguns valores e a reverberação de ideias, fortes ainda hoje, foram semeadas na invenção do Brasil. A ode à miscigenação e a negação antolhada dos conflitos e tensões, comuns e recorrentes no pós-independência, são exemplos. Gama denunciava e atuava contra esta hipocrisia da elite no Brasil do Século 19.

O deliberado esquecimento de sua obra, cada vez mais resgatada e evocada, é inaceitável ante à popularidade e relevância que Gama alcançou em vida. Nota disso é seu funeral, que mobilizou cerca de 10% da cidade de São Paulo. Por isso, jogar luz à vida e obra de Luiz Gama é cada vez mais recorrente e importante na academia, para o Movimento Negro e também para o Movimento Liberal.

Assim, posto que a invenção do Brasil não foi um processo uno, tranquilo e linear, e que muitas das mentalidades do século 19 permanecem e reverberam no Brasil contemporâneo, o vulto de Luiz Gama torna-se ainda maior.

Mais do que um precursor para os abolicionistas, seus feitos e escritos trazem a dor e a sensibilidade que a população negra no Brasil até hoje é testemunha. Além: muito do que Gama defendeu não foi levado a cabo até hoje e assim, permanece atual e necessário. Inequivocamente é possível afirmar: Luiz Gama é um dos inventores do Brasil.

 

Edson Lau é historiador e gestor público, coordenador da setorial antirracista Luiz Gama, do Livres

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  1. Gostei do termo “sequestrados”. Faltou o complemento “por quem”? Uma vez libertos o esperado seria que os sequestrados fossem levados à suas casas, à sua terra, à sua origem, devolvidos aos seus; ou não é assim que funciona??????? Não tenho nada contra o revisionismo histórico, contra a verdade, mas que ele seja TOTALMENTE HONESTO, não parcialmente honesto. Quem subjugava tribos inteiras na África eram outros africanos que vendiam os capturados para Portugal. O Brasil entrou de bucha na história

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