Wallace Martins/Futura Press/Folhapress

EXCLUSIVO: Luis Miranda relata que, em reunião com líder do governo e lobista, recebeu oferta de propina para não atrapalhar negócio da Covaxin

29.06.21 20:34

No final de março deste ano, a bilionária venda da vacina indiana Covaxin para o governo brasileiro havia, ao menos teoricamente, subido no telhado. Luis Miranda (foto), o deputado que na semana passada ganhou os holofotes ao denunciar a existência de um possível esquema de corrupção por trás do negócio, tinha acabado de ir até o presidente Jair Bolsonaro relatar as suspeitas em torno do contrato. Funcionário de carreira do Ministério da Saúde e lotado justamente no setor encarregado de cuidar das importações de medicamentos, o irmão dele, Luis Ricardo Miranda, estava sob pressão para deixar o processo de compra da Covaxin correr mesmo diante de vários indícios de irregularidades. Bolsonaro, como contou o deputado à CPI da Covid, prometeu acionar a Polícia Federal para apurar as suspeitas, mas não há sinal de que qualquer investigação tenha sido aberta. O presidente teria dito ainda, durante o tête-à-tête com Luis Miranda, que o rolo da vacina era coisa de Ricardo Barros, líder do governo na Câmara dos Deputados. As suspeitas levantadas pelo parlamentar deram à CPI uma linha de investigação que pode resultar em problemas concretos para Bolsonaro. Ao deixar de adotar providências diante da denúncia que recebera, o presidente pode ter incorrido no crime de prevaricação. Além disso, o caso derruba o discurso de que não há corrupção no atual governo, uma cantilena que o próprio Jair Bolsonaro entoa com frequência. Mas não é só. Há outros lances gravíssimos na trama, como o que Crusoé revela agora: depois da conversa com o presidente, Luis Miranda foi chamado para duas reuniões em que recebeu uma oferta de propina milionária para parar de atrapalhar o negócio.

Em 31 de março, onze dias depois de ter ido até Jair Bolsonaro com o irmão a tiracolo e munido de documentos que mostravam os indícios de irregularidades no processo de compra da Covaxin, o próprio Luis Miranda foi convidado por um conhecido lobista de Brasília para participar de uma reunião em uma casa no Lago Sul. Silvio Assis, figura conhecida da Polícia Federal por envolvimento em outros esquemas de corrupção e homem de confiança de Ricardo Barros, desejava conversar pessoalmente com o deputado. Luis Miranda aceitou o convite. O assunto era justamente a compra das vacinas indianas. Assis explicou que nada poderia dar errado no negócio e procurou transformar Miranda em aliado. Tentou fazer com que ele convencesse o irmão a parar de criar embaraços para o negócio. A certa altura da conversa, disse que o próprio Luis Miranda poderia ser recompensado caso topasse ajudar na empreitada – sem falar em valores, disse que, se tudo desse certo, a reeleição do parlamentar estaria garantida. O deputado saiu da mansão do lobista sem que a conversa avançasse.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéA casa onde ocorreram as reuniões. No detalhe, o detector de metais instalado na porta
Pouco mais de um mês depois, já em maio, houve um novo encontro, marcado a partir de uma troca de mensagens de WhatsApp – Luis Miranda guarda com cuidado os registros. A reunião ocorreu na mesma casa de antes. Desta vez, ao receber o deputado, Silvio Assis estava junto com um convidado especial: o próprio Ricardo Barros, líder do governo na Câmara. No começo, a toada dessa segunda conversa foi bem parecida com a da primeira. O objetivo, de novo, era convencer Luis Miranda de que era importante fazer com que o irmão dele parasse de embarreirar o contrato da Covaxin. Ali ficou mais clara a razão da participação de Silvio Assis nas tratativas. O lobista, conhecido por seu talento para convencer políticos a aderir a interesses de empresários junto ao setor público, estava encarregado de aparar arestas capazes de impedir que o contrato saísse finalmente do papel. Seu papel era fazer a venda das vacinas fluir, ainda que para isso fosse preciso dividir os lucros com outros políticos.

Foi então que a conversa avançou, com Ricardo Barros presente. A certa altura, Silvio Assis, que demonstrava falar em nome da Precisa Medicamentos, a empresa brasileira intermediária do negócio com o Ministério da Saúde, disse a Luis Miranda que ele poderia ser muito bem recompensado caso aderisse à empreitada. A conversa passou a envolver valores, conforme Crusoé apurou com fontes a par do episódio. Silvio Assis prometeu a Luis Miranda uma participação sobre cada dose da vacina que seria vendida ao Ministério da Saúde: 6 centavos de dólar. O deputado entendeu bem a proposta. Se aceitasse a “parceria”, poderia levar 1,2 milhão de dólares – ou 6 milhões de reais – se a venda das 20 milhões de doses da Covaxin para o governo fosse finalmente concluída.

ReproduçãoReproduçãoO lobista Assis se diz amigo de Ricardo Barros há dez anos
A interlocutores, Luis Miranda relatou os dois episódios em detalhes. Crusoé teve acesso às conversas. O deputado afirma que, nas duas reuniões, rechaçou peremptoriamente a proposta do lobista. Em uma conversa nesta terça-feira, 29, ele disse que, em uma das oportunidades, até teria ameaçado dar voz de prisão ao lobista. Ele afirma não acreditar que a oferta de propina que recebeu tenha relação com a conversa que teve, dias antes, com o presidente da República para denunciar irregularidades no processo de compra da vacina. A casa onde ocorreram os dois encontros fica em uma área residencial do Lago Sul, mas de acordo com relatos de vizinhos é usada apenas para reuniões, com movimento intenso de engravatados e carros de luxo em dias de semana. Do lado de fora, é possível ver que na entrada da casa há um detector de metais pelo qual os convidados precisam passar. Gravadores e outros sistemas eletrônicos não são bem-vindos ali.

Miranda disse a Crusoé que prefere não se manifestar sobre as conversas que teve com o lobista e com o líder do governo. Ele afirma que prefere falar sobre o assunto para a Polícia Federal, se for chamado. Silvio Assis confirmou ter recebido Luis Miranda algumas vezes, mas negou que tenha tratado com ele da compra de vacinas: “Se tratou de vacina (nos encontros), não foi comigo, não. Nem conversei isso. Nada”. O lobista admitiu que em um desses encontros, o deputado Ricardo Barros, de quem se diz amigo, estava presente. “Com o Luis eu tenho uma relação nova. Ele esteve no meu escritório três vezes, ou quatro, não me recordo precisamente. Não tem nada de anormal, não”, declarou Assis. “O Ricardo é amigo, tem mais de dez anos que eu conheço”, emendou.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressLigação com Assis se estreitou quando Barros, hoje líder do governo Bolsonaro, era ministro
Silvio Assis é um personagem que aparece com certa frequência em histórias pouco ortodoxas envolvendo o poder. Quando seu amigo Ricardo Barros era ministro da Saúde no governo de Michel Temer, ele tinha livre acesso ao ministério. Entrava e saída pela entrada privativa que leva ao gabinete do ministro, sem maiores embaraços e sem deixar registro – por vezes, na companhia de representantes de empresas com interesses na pasta. Em maio de 2018, ele chegou a ser preso pela Polícia Federal em uma operação que mirava um esquema de venda de registros sindicais no Ministério do Trabalho. Segundo os investigadores, Assis cobrava propina para facilitar a aprovação dos processos. O lobista também é alvo de uma pilha de ações judiciais movidas por ex-funcionários de um site de notícias que ele lançou ainda durante o governo do PT – o lobista contratou dezenas de jornalistas e depois, ao dar cabo repentinamente do negócio, ficou devendo a vários deles. Após ser preso há três anos, ele passou um longo período submerso, até que voltou a dar as caras no atual governo, especialmente após a aliança de Jair Bolsonaro com o Centrão. Há pouco tempo, apareceu no noticiário como anfitrião de animados almoços com políticos. Em pelo menos um deles, havia uma convidada de honra: Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe do filho 04 do presidente, Jair Renan.

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