Crusoé/Caio MattosPadre Adrian Bennardis conduz missa em rua da Villa Soldati, na zona sul da cidade de Buenos Aires. Foto: Caio Mattos

Eleições argentinas: quem se lembra dos pobres na Argentina

Esquecidos até as vésperas das eleições, os mais de 40% de pobres da Argentina contam com ajuda de um grupo organizado de padres
17.10.23 12:44

As incertezas das eleições deste domingo, 22 de outubro, na Argentina afetam os mais vulneráveis com campanhas predatórias de todos os lados. Os pobres da Argentina — 40% da população, contra 33% no Brasil — só sabem que podem contar com a ajuda dos padres locais. 

Os curas villeros, ou “padres da favela” em tradução grosseira, são organizados de maneira sem paralelos em outros países. Eles ainda foram o primeiro grupo de dentro da Igreja Católica a se posicionar sobre estas eleições na Argentina.

O que define um cura villero é ser responsável por uma paróquia em uma favela e morar, e atuar, dentro da comunidade. “Vivemos nos bairros e trabalhamos neles em tudo o que precisar, desde uma pastilha de paracetamol até um velório”, diz padre Adrian Bennardis, da paróquia Virgen Inmaculada, na Villa Soldati, uma favela no sul da cidade de Buenos Aires. “Se a Igreja me realocar, deixarei de ser cura villero”, acrescenta.

Crusoé/Caio MattosFoto: Caio MattosPadre Adrian Bennardis na frente da igreja principal da Paróquia Virgem Imaculada, na Villa Soldati, na zona sul da cidade de Buenos Aires. Foto: Caio Mattos
 

Esses padres existem desde a década de 1960. Atualmente, há de 30 a 40 curas villeros organizados. Eles se concentram na cidade de Buenos Aires e em sua região metropolitana. 

Nestas eleições, eles emitiram duas notas de posicionamento oficial. O primeiro documento foi publicado ainda em junho, um mês antes das primárias. O texto celebra os 40 anos de democracia e pede aos então pré-candidatos que tenham atenção com os mais carentes. O título da nota é “Não se esqueçam dos pobres”.

O resultado das primárias, nas quais o populista libertário Javier Milei foi o mais votado com 30% dos votos e 10 pontos de vantagem do segundo, levaram os curas villeros a publicarem um segundo comunicado.

Os motivos foram ataques de Milei ao papa Francisco datados de desde 2017. O presidenciável chegou a chamar Francisco de comunista e “representante do maligno na Terra”

“Acaba-se por questionar se alguém com esse distúrbio emocional, que não consegue encontrar alguém que pensa diferente sem gritar e insultar, consegue suportar as tensões inerentes ao cargo público a que aspira”, diz a nota dos curas villeros.

Esses padres não divulgam suas posições políticas para além dos documentos oficiais. “Emitimos uma opinião política pelo cenário, mas nunca uma opinião partidária”, afirma padre Adrian. 

Em contrapartida, os moradores e as periferias, em si, expressam opiniões sobre as eleições. Crusoé passou um dia na Villa Soldati e outro na cidade de Moreno, na região metropolitana de Buenos Aires. A reportagem também esteve na Villa 1-11-14, ou Bairro Padre Rodolfo Ricciardelli, uma das maiores favelas da capital argentina. 

A principal preocupação dos moradores dessas regiões, assim como do restante da Argentina, é a inflação, claro. Ela está nos 12,7% mensal e beira os 140% no acumulado dos últimos 12 meses, segundo dados oficiais referentes a setembro. 

“Um quilo de bife milanesa custa 5.000 pesos. Como pode viver assim?”, diz Marcelo, de 47 anos, mais conhecido como Chaca, morador da Villa Soldati. A inflação no preço dos alimentos é ainda superior à geral: 14,3% mensal e 150,1% no acumulado dos últimos 12 meses.

E a tendência da inflação é acelerar com a eliminação súbita de impostos implementada pelo ministro da Economia e presidenciável governista, Sergio Massa, desde as primárias. Nesse cenário, surge o voto em Milei.

O voto no libertário nas periferias está concentrado nos eleitores mais jovens, outra semelhança com o cenário nacional. “Milei é visto por muitos jovens daqui, mas também adultos, como carismático e engraçado. Ele vem com esse conceito de ‘liberdade’ e gera esperança entre as pessoas, cansadas das dificuldades econômicas”, diz Laura, de 39 anos, moradora de Moreno.

Ela, todavia, é crítica de Milei. “O problema nesse apoio a ele é que há um desconhecimento sobre a sua posição desumanizada das políticas públicas”, acrescenta Laura, em referência aos planos de Milei para privatizar o sistema de saúde e de educação pública, dentre outros. 

“Não se pode culpar as pessoas. Se você falar que Milei vai acabar com direitos, os mais carentes respondem: ‘Que direitos? Os que já me tiraram?’”, diz José, de 38 anos, outro morador de Moreno contrário ao libertário.

Crusoé/Caio MattosFoto: Caio MattosJosé e Laura no bairro de Manantiales, em Moreno, região metropolitana de Buenos Aires. Foto: Caio Mattos
 

É possível observar algum apoio a Milei na Villa Soldati também. No muro de um clube na Avenida Castañares, a menos de duas quadras da igreja da paróquia local, há uma pichação grande de apoio ao libertário.

Ainda assim, parte dos moradores nessas regiões temem que um eventual governo Milei acabe com os serviços públicos, planos sociais e direitos trabalhistas, todos os quais o libertário critica. 

A maior presença do Estado na Grande Buenos Aires, em comparação ao restante do país, podem explicar um pouco a resistência ao libertário na região. O que Laura e José destacam, pelo menos em Moreno, é a popularidade da prefeita local, uma peronista, que busca a reeleição neste domingo.

Apesar de ter liderado nas primárias entre eleitores pobres do interior de quase todo o país, Milei não teve tanto êxito na capital e sua região metropolitana. Ele teve 25% dos votos totais, contra 37% de Massa, na Grande Buenos Aires — um resultado ainda expressivo considerando que a região metropolitana é um reduto peronista. Chaca não gosta de Milei e nem deve votar nele. Laura e José confirmam que votarão em Massa.

Trabalho social

Os curas villeros são presença constante na assistência social aos moradores das favelas da cidade de Buenos Aires e da região metropolitana. Dentre os serviços e infraestruturas presentes nas paróquias dos curas villeros, estão restaurantes comunitários, chamados comedores; colégios primário e secundário, que atendem também a adultos; e clubes desportivos. Tudo é gratuito.

Os curas villeros não atuam sozinhos. Eles se coordenam com a assistência pública, voluntários e moradores dos bairros, independentemente de crença religiosa. “Os laicos também são protagonistas nesse caminho”, diz padre Mingo Rhein, colega de padre Adrian na paróquia da Villa Soldati.

Há também cooperação entre os curas villeros de diferentes favelas. Padre Adrian colabora toda semana com o padre Pedro Cannavó, da paróquia Madre del Pueblo, da Villa 1-11-14, a menos de 2 quilômetros de Villa Soldati, e ao lado do estádio El Nuevo Gasómetro, do clube de futebol San Lorenzo.

Crusoé/Caio MattosFoto: Caio MattosPadre Pedro Cannavó conversa com padre Adrian Bennardis na Villa 1-11-14, Bairro Padre Ricciardelli, na zona sul da cidade de Buenos Aires. Foto: Caio Mattos
 

O nome 1-11-14 é uma referência aos tempos da última ditadura militar. Hoje, a comunidade é chamada oficialmente de Bairro Padre Ricciardelli. Essa favela é uma das maiores da cidade de Buenos Aires, com 40.000 habitantes, comparável a Heliópolis, em São Paulo. 

Os curas villeros da Grande Buenos Aires se reúnem uma vez por mês para organizar o trabalho conjunto. Eles cooperam, em especial, no programa de reabilitação de dependentes químicos, que integram a federação Hogar de Cristo. 

Algumas paróquias, como as de padre Adrian e Pedro, dividem granjas na zona rural da região metropolitana de Buenos Aires para internar os dependentes químicos. Essa internação isolada é uma das etapas do processo de reabilitação.

“Nem todas as paróquias têm granjas. Então, a granja que administramos recebe jovens também da Villa Soldati”, diz padre Pedro. Ele e padre Adrian revezam no trabalho logístico e missionário na granja, localizada na cidade de General Rodriguez, a 60 quilômetros da capital.

 

Presença na região metropolitana

As áreas mais pobres da região metropolitana de Buenos Aires, também conhecida como Conurbano, são mais carentes que suas contrapartes na capital. “Na capital, há mais acessibilidade a recursos, a trabalho e a serviços de saúde. Pode levar até 3 ou 4 horas de estrada para ir e voltar”, diz o padre Leonardo Silio, da paróquia San Martín de Porres, em Moreno, a 40 quilômetros de Buenos Aires.  

O acesso à água encanada e ao esgoto representam bem essa distinção na Grande Buenos Aires. Quase todos têm acesso à água encanada e esgoto na capital, enquanto que, na região metropolitana, esses índices caem para 75% e 45%, respectivamente.

Crusoé/Caio MattosFoto: Caio MattosPadre Leonardo Silio e Jorge Moreno em frente à paróquia San Martin de Porres em Moreno, região metropolitana de Buenos Aires. Foto: Caio Mattos
 

Nesse contexto, surge a figura dos recenseadores dos bairros populares em 2017, durante o governo de Mauricio Macri. O objetivo é recensear essas regiões para que o Estado provenha de recursos e serviços públicos.

Quase 5.700 bairros populares foram recenseados em todo o país desde então. Estima-se que mais de um milhão de famílias já foram abrangidas pelo recenseamento.

Na região de Moreno e da vizinha Merlo, há 198 bairros recenseados. Os recenseadores são trabalhadores voluntários e respondem ao governo nacional. Em Merlo-Moreno, eles estão organizados sob a diocese local. Os curas villeros apenas cooperam.

Crusoé/Caio MattosFoto: Caio MattosPadre Leo Silio conversa com recenseadores no bairro de Manantiales, em Moreno, região metropolitana de Buenos Aires. Foto: Caio Mattos
 

O bairro de Manantiales, onde atua a paróquia de padre Leonardo, ainda não completou o processo de recenseamento, que leva até quatro anos. A maioria das ruas não têm asfalto, e algumas nem têm nome oficial. Nesses lugares, a presença de padre Leonardo e de seu colega de paróquia, o padre Jorge Moreno, se tornam ainda mais importantes.

Para além da carência do Estado, a falta do comércio também atinge os moradores do Conurbano. “Aqui, por exemplo, pode ter só um lugar que vende um pacote de açúcar e o preço chega a 1.300 pesos. Em um supermercado na capital, você encontra por 400 pesos”, diz padre Leonardo.

Moreno, Grande Buenos Aires

 

Boa parte dos políticos se voltam à região metropolitana de Buenos Aires no período eleitoral. Eles sabem que aqui se concentra mais de 30% dos votos de todo o país. Somando a capital, a Grande Buenos Aires tem 40% do eleitorado nacional. Quando passar as eleições, muitos voltarão a negligenciar os pobres da região; os curas villeros, não.

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  1. Desejo que Milei seja o vencedor. Poderá mostrar muito mais desenvolvimento do que os serviços públicos que, de fato, não existem. E, os que existem não atendem com o mínimo de qualidade.

  2. O que falta à Argentina é um homi bão igual o Julio LanZÉloti. Quem sabe ele convence os “hermanos” sem posses, mas com pose, a parar de nos chamará de malcacos…

  3. Deus ajude nuestros hermanos argentinos. O populismo peronista, o esquerdismo peronista e os nazistas peronistas, todos corruptos, destruíram a bela Argentina! Perón era nazista...Todos estes ignorantes incompetentes só afundaram a Argentina, esperamos que surja um candidato que concerte os estragos. Aqui temos populistas e esquerdistas (Lula e PT/PSOL/PSTU/MST/MTST?etc.) que apoiam o Fernandes...

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