Isso sim é ditadura sanitária
Xi Jinping deseja vender a ideia de que a ditadura que ele comanda está mais equipada do que as democracias para vencer graves crises de saúde. Não está, como demonstra o sofrimento dos seus cidadãos
Moradora de Pequim, Song Wenxian, 85 anos, ficou desapontada ao encontrar fechada a tenda onde esperava tomar a segunda dose da vacina contra a covid 19. O local estava vazio porque todos os servidores da saúde haviam sido mobilizados no esforço de testagem em massa da população. Essa medida é parte da estratégia de “Covid Zero” implementada com força draconiana pelo governo de Xi Jinping – o mesmo governo que falhou na vacinação dos cidadãos acima de 60 anos, mais suscetíveis a casos graves da doença. Em Xangai, centro financeiro e cidade mais populosa da China, com 25 milhões de habitantes, a política da Covid Zero confinou áreas inteiras. Cercas verdes foram instaladas para impedir a entrada e saída de pessoas. Em abril, quando a revista The Economist entrevistou Song Wenxian, a capital chinesa ainda não havia sofrido esse lockdown drástico. “Eu acho que os líderes dão mais atenção para Pequim”, disse a confiante octagenária. Mas a cidade hoje vem registrando mais de dez novos casos diários de covid há um mês, com um pico de 99 no domingo 22. Teme-se que as autoridades sanitárias baixem sobre a capital o cenário de terror que se tem visto em várias outras cidades do país, como Xangai, onde as restrições ainda não foram relaxadas mesmo depois de queda substantiva no contágio.
Entre 2020 e 2021, nos anos mais graves da pandemia, quando as UTIs brasileiras estavam superlotadas e pessoas morriam por falta de cilindros de oxigênio em Manaus, disseminou-se entre os bolsonaristas com alguma pretensão intelectual (passe o adjetivo complacente) a ideia de que o distanciamento social e o uso de máscaras eram imposições autoritárias dos governos estaduais. Entre os ditos liberais que defendiam o direito inalienável de contagiar os vizinhos com um vírus potencialmente fatal, houve até quem dissesse que as medidas sanitárias eram uma forma de “engenharia social”, talvez comparáveis à Revolução Cultural de Mao Tse-Tung. Pois a China está se empenhando em um projeto de engenharia social-sanitária que parece corporificar as fantasias mais paranóicas dessa turma.
Vitrine da Covid Zero, Xangai, em quarentena desde o final de março, não tem nada de bonito a mostrar. Nas zonas residenciais isoladas pelas cercas verdes, há relatos de privação e fome. Hospitais superlotados recusam pacientes que não estão com covid. Nos prédios temporariamente confiscados para abrigar doentes – que incluem edifícios residenciais esvaziados à força, grandes prédios comerciais e até centros de convenções –, é tudo improvisado. Uma reportagem do The New York Times coletou relatos tétricos dos internados. A lista de precariedades é inesgotável: atendimento médico insuficiente, comida rala, superlotação que impede qualquer privacidade, condições de higiene ruins, lixo acumulado próximo às camas. Uma jovem contou que evita beber água, para não ter de usar os banheiros químicos imundos e fedorentos do centro de convenções onde ela foi compulsoriamente internada.
Tudo isso ocorre quando boa parte do mundo já consegue conviver com a variante ômicron do vírus, que é mais contagiosa mas não tão fatal. Até a Organização Mundial da Saúde, que já foi acusada de ser demasiado leniente com o país de onde o vírus se originou, manifestou preocupação com os rumos tomados pela China.
Entre outras razões para a China temer o ômicron, está a baixa imunidade dos idosos. Não se deve esperar racionalidade de um regime comunista: o governo que de 1980 a 2016 determinou que cada família do país poderia ter apenas um filho não quis tornar a vacina obrigatória. As vacinas chinesas só oferecem proteção efetiva com duas doses, mais uma dose de reforço. Apenas 82% dos chineses acima de 60 anos completaram duas doses. Acima dos 80 anos, a situação é mais preocupante: estima-se que só 50% tomaram duas doses. Na imunização, a potência chinesa é superada pela Coreia do Sul, onde 95% dos cidadãos acima de 60 já receberam três doses.
O lockdown ditatorial da China parece o antípoda da política “todos vamos morrer um dia” preconizada por Jair Bolsonaro. Mas há tênues semelhanças. A China também tem sua versão da cloroquina: cápsulas de Lianhua Qingwen, produzidas pela Shijiazhuang Yiling Farmacêutica, especializada em remédios da medicina tradicional chinesa, foram recomendadas pelo governo para tratamento de “casos moderados” de covid. Na composição do remédio, entram raízes de alcaçuz, sementes de damasco e ervas, ingredientes muito naturais mas totalmente inócuos no combate ao vírus SarsCov2.
Xi Jinping precisa atestar o sucesso da Covid Zero até o segundo semestre, quando espera ver seu nome confirmado pelo Congresso do Partido Comunista Chinês como o primeiro presidente do país a ter um terceiro mandato. Até o momento, sua ditadura sanitária vem suscitando resistência, sobretudo em Xangai. Vídeos de confrontos entre moradores e policiais já pipocaram nas sempre vigiadas redes sociais chinesas, e mensagens de protesto têm se disseminado em um volume que por vezes ultrapassa a capacidade de trabalho dos censores. As consequências econômicas do lockdown violento são amargas, com quedas na produção industrial e no comércio interno. Parece certo que o PIB chinês de 2022 não crescerá os 5,5% projetados pelo governo. E sendo a China um gigante do comércio internacional, suas políticas fracassadas terão impacto sobre uma economia global já deprimida pela Guerra da Ucrânia.
No primeiro surto da covid, em Wuhan, no final de 2019, médicos locais que alertaram para o perigo da nova doença respiratória foram desacreditados e censurados pelas autoridades. Mas, com o isolamento total das regiões afetadas, a China saiu da fase mais crítica da pandemia anunciando resultados virtuosos. O site da OMS hoje registra um total de pouco mais de 16 000 mortes pela covid no país comunista. No Brasil em que o presidente equiparou a doença a um gripezinha, os mortos são mais de 660 000 – e a China tem 1,4 bilhões de habitantes, contra 214 milhões de brasileiros. Quando se considera que a Coreia do Sul, com sua vacinação mais eficiente e uma população de apenas 51 milhões, teve 24 000 mortos, a conta definitivamente não fecha. A imprensa ocidental tem denunciado estratégias de subnotificação praticadas pela China, e é possível que nunca saibamos quantos chineses perderam a vida para a doença em bairros vigiados por policiais com macacões de isolamento biológico. Xi Jinping deseja vender a ideia de que a ditadura que ele comanda está mais equipada do que as democracias para vencer graves crises de saúde. Não está, como demonstra o sofrimento dos cidadãos de Xangai. Ditaduras são sempre insalubres.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (4)
Márcio Luiz Quaranta
2022-05-30 15:26:20Excelente comentário. Parabéns! Ditadores e estúpidos não sabem combater doenças.
PAULO CEZAR DE OLIVEIRA
2022-05-30 12:57:43Se a China lida assim com a sua população, nem é bom pensar como lidará com o Ocidente se conseguir hegemonia. É prudente não depender deles!
Ricardo
2022-05-29 14:44:17A ditadura comunista chinesa só interessa a pessoa economicamente ativa
JULIANA
2022-05-29 13:21:09Se ele quer demonstrar q sua ditadura está mais preparada que as democracias para resolver crises de saúde, ele deveria lançar mão do bom senso, da coerência e de um mínimo de racionalidade. Os poucos relatos q li sobre o lockdown chinês são bem semelhantes a roteiros de filmes de terror! Que dó dessas pessoas!