A conversa sobre aborto tem mais estridência do que clareza
“Posicionar-se contra ou a favor de alguma coisa – qualquer coisa – é imperdoável vulgaridade. Nem sempre consigo evitá-la.” Publiquei essa tentativa de aforismo no Facebook, em 2013. Uma dúzia de amigos curtiram o post. Bastou para que eu me sentisse um La Rochefoucauld de rede social. Ainda me envaideço, confesso, do torneio da frase...
“Posicionar-se contra ou a favor de alguma coisa – qualquer coisa – é imperdoável vulgaridade. Nem sempre consigo evitá-la.”
Publiquei essa tentativa de aforismo no Facebook, em 2013. Uma dúzia de amigos curtiram o post. Bastou para que eu me sentisse um La Rochefoucauld de rede social.
Ainda me envaideço, confesso, do torneio da frase final, com sua velada admissão de que o imperdoável é inevitável. E aprecio a total ausência de artigos no conjunto. Se houvesse escrito "uma imperdoável vulgaridade”, a frase ficaria ela mesma vulgar.
No entanto, sou um homem vulgar. Não deve passar semana sem que eu me posicione sobre (quase sempre contra) decisões do Planalto, sentenças do STF, projetos de lei, abaixo-assinados de artistas. Não falo só do que escrevo para Crusoé: também sou assim, beligerante, na vida cotidiana. Ando retirado das casas de Zuckerberg e Musk, mas o recesso escuro da minha mente é por si só uma rede social, na qual mantenho altercações inflamadas com os mais variados homens de palha.
(Outro dia, saindo de uma estação de metrô, uma senhora veio me oferecer um folheto religioso, perguntando se eu gostaria de "uma mensagem de esperança”. Dispensei a esperança com um gesto rude, mas dois passos depois me ocorreu a resposta que poderia ter dado – felizmente não a dei, pois cruel: “Não, minha senhora, só estou interessado em mensagens de desespero”. Devo ter percorrido uns cinquenta metros fantasiando o diálogo que se seguiria à minha tirada besta. Só saí desse transe quando meu filho de 13 anos, que me acompanhava naquele dia, avisou que eu estava movendo os lábios de um jeito esquisito. Talvez eu deva procurar um psiquiatra.)
Essa introdução demasiado longa e pessoal abre alas para o mais vulgar dos temas ditos polêmicos – o renhido debate entre posições inegociáveis que dominou boa parte da conversa pública na última semana: o aborto.
A discussão sobre o aborto – na qual já rocei há quase dois anos, em um texto sobre Dave Chappelle – é um loop contínuo em torno de um centro falso. Aliás, dois centros, um da torcida pró e outra da claque contra: o Direito da Mulher sobre seu Corpo e a Defesa da Vida. Soam como nobres princípios erigidos sobre elevados edifícios kantianos, mas basta um exame superficial para constatar que eles são insuficientes e incongruentes. Nem corpo nem vida têm direitos absolutos, e esses clichês não alcançam a miséria e a tristeza das situações reais em que o aborto pode aparecer como promessa de solução.
Por suas implicações morais, sociais, psicológicas, o aborto representa um problema delicado, que no entanto está à mercê da demagogia bruta de nossos parlamentares. Daí nasceu a teratologia que é o chamado PL do Estuprador, apelido que não é exato mas é justo. Uma desforra mesquinha contra os avanços do STF sobre as funções do Congresso poderia condenar meninas mal entradas na adolescência (61% das vítimas de estupro em 2023 têm até 13 anos, segundo o Anuário Nacional da Segurança Pública) a parirem filhos de seus abusadores.
O PT concordou com o pedido de urgência para a votação do PL, e o governo, de início, manteve-se calado sobre o mérito da questão. Nesse imbróglio tão feio, houve um único aspecto auspicioso: Janja ficou em silêncio por alguns dias. Sociedade e imprensa, porém, levantaram uma grita generalizada contra o PL, sobretudo porque a pena prevista para a mulher estuprada que recorre ao aborto depois da 22a semana de gestação seria maior do que aquela aplicada a estupradores. Acossada, a Câmara – leia-se, Arthur Lira – adiou para as calendas a tal votação urgente.
De Tábata Amaral a Gleisi Hoffmann, quase todos os parlamentares que criticaram o PL fizeram questão de dizer que são contrários à legalização do aborto, que o procedimento só deve ser permitido nos casos excepcionais já previstos em lei. É uma posição razoável, claro. Ser ao mesmo tempo contra o aborto e contra a lei proposta pelo deputado Sóstenes Cavalcante (foto) não comporta contradição alguma. Até entre grupos tradicionalmente contrários à interrupção médica da gravidez prepondera a rejeição ao PL: 57% dos evangélicos e 68% dos dos católicos são contra, segundo o Datafolha. Em se tratando de políticos, porém, resta sempre a suspeita: eles se declaram contra o aborto por convicção ou por medo de defender uma causa impopular?
A mesma pesquisa do Datafolha diz que 24% dos brasileiros são a favor de alguma forma de legalização do aborto, aí somados os que desejam ampliar o direito ao procedimento de forma limitada (17%) e os que são a favor de seu emprego em qualquer situação (7%). Em uma pesquisa de março do mesmo instituto, a soma dessas duas categorias era de 21%, diferença que está dentro da margem de erro. Esses números têm se mantido estáveis nos últimos anos, e são confirmados por outros institutos de pesquisa. Grosso modo, pelo menos 70% dos brasileiros são contra; 20%, a favor. Esta ainda é uma minoria expressiva. Mas duvido muito que 20% dos congressistas se declarem favoráveis ao aborto.
Não surpreende que uma decisão recente de Alexandre de Moraes que apenas garantiu um método abortivo nos limites da lei atual tenha sido vista como um meio insidioso de avançar a legalização. Quando as vozes pró-aborto não se manifestam de forma honesta e aberta, aqueles que são contrários à interrupção artificial da gravidez têm boas razões para suspeitar de que estão cercados de abortistas dissimulados.
Fora da política eleitoral, existe, é verdade, uma militância pró-aborto. Mas esta é em geral composta por gente estridente que repisa o lugar comum do “corpo da mulher” até o tal corpo se tornar uma abstração incorpórea. Os vinte por cento deveriam refinar seus argumentos. Precisam falar com menos ênfase e mais clareza. Mas duvido que a argumentação serena prevaleça em qualquer lado do debate. Aborto é uma questão politizada e polarizada, um cavalo de batalha na guerra cultural. A opinião vulgar impera.
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Comentários (1)
maria
2024-06-24 12:50:30Que tal ouvir uma ginecologista obstetra , que gosta de ajudar a darem a luz, e ao mesmo tempo conhece a fisiologia de uma menina de 12 anos . Podemos começar a conversa pela parte física, anatômica . Ouvi uma entrevistada na Jovem Pan e ela era muito melhor para convencer de qualquer ponto de vista do que as famigeradas feministas .