A bandeira na Paulista e a vassalagem simbólica
O mais grave não é o uso da bandeira dos Estados Unidos em si, mas o que ela simboliza: o abandono da autocrítica e da autoconfiança

Quando um grupo de cidadãos ergue, em plena Avenida Paulista, uma bandeira dos Estados Unidos da América como símbolo tortuoso de sua identidade política, não está apenas praticando um ato de apoio internacional.
Está, sobretudo, protagonizando um gesto de capitulação simbólica: uma renúncia à própria soberania cultural, moral e política. Trata-se de um sintoma alarmante de uma nação que perdeu a confiança em si mesma, em sua história, em seus princípios e em sua capacidade de se conduzir por sua própria razão.
Esse tipo de manifestação revela algo mais profundo que simples alinhamento ideológico.
É a expressão de um mimetismo político no qual se tenta incorporar o modelo estrangeiro como se ele fosse o único caminho possível para a ordem, a liberdade ou a salvação nacional.
Ao fazer isso, alguns brasileiros substituem a construção interna de um projeto político por uma adesão estética a símbolos externos; como se bastasse vestir a fantasia de outra pátria para herdar sua força e virtude ... ou para extrair dela algum resto de simpatia.
Mas liberdade não é um adereço. Não se herda, não se importa, nem se cola na testa.
Liberdade exige formação. Exige responsabilidade individual, consciência histórica e um senso claro de pertencimento à própria realidade. Quando um povo troca seus próprios símbolos por bandeiras alheias, está dizendo, ainda que silenciosamente, que não sabe mais como ser ele mesmo.
A situação se torna ainda mais paradoxal quando se observa que o atual governo Trump, com sua política externa centrada em interesses exclusivamente norte-americanos, não é senão aliado de si mesmo.
Não importa o entusiasmo com que seus apoiadores brasileiros agitam bandeiras e slogans: manifestações de vassalagem explícita não transformarão esse autointeresse essencial em solidariedade real. O nacionalismo americano, como qualquer outro nacionalismo coerente, não está à disposição de projetos políticos estrangeiros, nem mesmo daqueles que o reverenciam.
Esse tipo de gesto denuncia a fragilidade de uma identidade política que, em vez de ser construída a partir da experiência nacional, da cultura local, do debate interno, prefere encontrar abrigo em modelos prontos, sedutores por sua força, mas alienígenas por sua lógica.
No fundo, há aqui um desespero mal disfarçado: a esperança de que alguém de fora venha resolver aquilo que já não se acredita poder resolver por dentro.
Curiosamente, essa devoção a símbolos estrangeiros se assemelha, em sua estrutura, aos mesmos erros cometidos por correntes políticas que idolatram regimes de outros tempos ou de outros continentes. Em ambos os casos, a solução é sempre externa, a autoridade é sempre importada, o modelo é sempre outro.
Essa repetição revela um padrão de fuga: a incapacidade de encarar de frente a complexidade da própria realidade nacional e de assumir o dever moral de reformá-la a partir de dentro.
O mais grave, porém, não é a bandeira em si, mas o que ela simboliza: o abandono da autocrítica e da autoconfiança.
Um país que precisa se apoiar em bandeiras alheias para justificar sua luta política é um país que não aprendeu a lutar por si. Um povo que busca fora o que deveria cultivar dentro corre o risco de transformar sua liberdade em dependência e sua identidade em caricatura.
Ainda mais alarmante é perceber que muitos dos que se declaram patriotas, aqueles que bradam “Brasil acima de tudo” como lema de fidelidade nacional, aceitam com naturalidade que um líder estrangeiro utilize instrumentos de guerra tarifária para tentar influenciar decisões soberanas do Judiciário brasileiro.
Isso não é apenas contradição: é delírio. Um patriotismo que se curva diante da ingerência externa, quando esta favorece seus próprios interesses ideológicos, revela-se vazio de substância e carregado de servilismo. Questões internas devem ser enfrentadas por quem as causa: os próprios brasileiros.
O problema do STF é um problema brasileiro, a ser resolvido (ou não resolvido) por um povo responsável pelo seu próprio destino. Transferir a resolução de nossos impasses para potências estrangeiras não é patriotismo, é abdicação. É a negação mais elementar da autodeterminação, substituindo a difícil virtude da responsabilidade política pela tentação infantil da tutela alheia.
A resposta para esse fenômeno não está em mais reatividade, nem em condenações morais superficiais.
Está na reconstrução paciente da cultura política, na valorização da educação, no cultivo da liberdade como responsabilidade. Está, sobretudo, no reencontro com a própria história, com os próprios símbolos, com as ideias que fizeram, e ainda podem fazer, do Brasil um lugar digno de sua própria bandeira.
Dennys Xavier é escritor, tradutor e PhD em Filosofia
Instagram: prof.dennysxavier
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Comentários (3)
Carlos Renato Cardoso Da Costa
2025-09-08 17:23:07No Brasil até o patriotismo é de 5ª categoria.
ANDRÉ MOURA MOREIRA
2025-09-08 14:41:01Parabéns! Disse tudo.
Sandra
2025-09-08 14:01:56Excelente análise. Foi chocante ver uma bandeira estrangeira tendo protagonismo numa manifestação de assim chamados "patriotas". Muita falta de noção.