A autenticidade factual em 'Tormenta', o livro-reportagem de Thaís Oyama
Dona de um olhar acurado, uma apuração consistente e um texto que margeia o irretocável, a jornalista Thaís Oyama em Tormenta - O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos passeia pelos principais momentos do primeiro ano do governo Bolsonaro incólume sob o ângulo ideológico. Marcel Proust dizia que “todo leitor é um leitor de si...
Dona de um olhar acurado, uma apuração consistente e um texto que margeia o irretocável, a jornalista Thaís Oyama em Tormenta - O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos passeia pelos principais momentos do primeiro ano do governo Bolsonaro incólume sob o ângulo ideológico.
Marcel Proust dizia que “todo leitor é um leitor de si mesmo”. O escritor, ao contrário, quando se presta a publicar um livro-reportagem, não pode escrever para o próprio deleite, sob o risco de aplicar à realidade o filtro do seu desejo. Oyama escapa dessa sempre tentadora armadilha e cumpre bem o papel ao qual se propõe: o de, no avanço pela informação exclusiva, do detalhe imperceptível a olho nu, municiar o leitor com a maior abundância de minúcias possível a respeito de um governo muito popular, mas pouco familiarizado ao exercício do poder – e, como resultado dessa condição inescapável, em constante efervescência política, para o bem e para o mal.
Na obra de 272 páginas, algumas de prender o fôlego, Tormenta revela como opera a gestão Bolsonaro, quais forças colidem entre si por cada milímetro de espaço na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto, os atores políticos que o presidente considera em mais alta conta e quem desperta no chefe do Executivo sentimentos de temores e desconfianças, os conchavos intramuros inerentes a qualquer governo, e como o caldo de cultura – ou incultura – no qual ele e os filhos foram forjados influenciaram os destinos do país no ano que passou.
Há revelações inéditas e fatos inconfessáveis – eventuais conclusões incômodas, favoráveis demais ou condescendentes de menos não são alienadas de quem lê. Num dos capítulos mais intrigantes do livro, o dedicado a Carlos Bolsonaro, intitulado “Zero Dois”, a autora traz os bastidores da relação mercurial do presidente com o segundo filho. Por exemplo, quando Carlos se apropriou das senhas do pai nas redes sociais e manteve por 24 horas na conta oficial do presidente no YouTube um vídeo recheado de petardos contra o vice-presidente Hamilton Mourão, os dois discutiram ao telefone. Na manhã seguinte, um domingo, depois de obrigado a deletar o vídeo, Carlos sumiu de casa. "Jair Bolsonaro ficou transtornado. Teclou para os amigos do filho perguntando sobre seu paradeiro. Telefonou para o próprio e lhe mandou seguidas mensagens de WhatsApp — todas sem acusação de recebimento. Naquele dia, o presidente não desgrudou do celular e mal conseguiu despachar".
Não seria a primeira vez, narra Oyama. Durante a campanha, Carluxo, como é conhecido, ameaçou ir embora para nunca mais voltar, caso o pai insistisse em nomear Gustavo Bebianno como ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Na ocasião, meses antes de cair em desgraça e ser apeado do governo, Bebianno venceu a queda-de-braço. Não sem provocar avarias na relação pai e filho. Em protesto, Carlos cortou a comunicação com o pai e, mais uma vez, Bolsonaro ficou “fora de si” com o sumiço dele. De acordo com o livro, o presidente cultiva o temor de que o “Zero Dois”, “usuário de medicamentos para estabilização de humor, faça uma besteira”. Talvez por isso a relutância de Bolsonaro em desagradá-lo.
Foi para fazer um afago no filho, por exemplo, que, segundo Oyama, Bolsonaro alçou Alexandre Ramagem à direção da Abin, contrariando o general Valério Stumpf, então secretário executivo do Gabinete de Segurança Institucional. Carlos ainda quis emplacar, sem sucesso, o primo Léo Índio num cargo em comissão DAS 5, o segundo posto mais dispendioso da estrutura federal. Acabou vetado pelo general Santos Cruz. “Carlos ficou furioso e guardou em banho-maria a vingança pelo veto ao primo", narrou a jornalista. Sim, o general, mais adiante, seria aniquilado pelo próprio Carluxo.
Outra relação sobre a qual Thaís Oyama joga luz é a desfrutada entre Bolsonaro e o presidente do STF, Dias Toffoli. Os dois se conheceram no longínquo ano de 2001, durante uma viagem à Amazônia, mas foi depois da eleição e da eclosão do caso Queiroz que seus interesses e corações se entrelaçaram. O cupido foi a advogada Karina Kufa, amiga de Toffoli e advogada do PSL. “Desde então, Toffoli se transformou no mais improvável novo amigo de infância do ex-capitão”, afirma Oyama. De janeiro a setembro, segue a jornalista, os dois se reuniram ao menos sete vezes. Quem conhece o presidente da República, narra a autora, afirma que um dos indicativos de sua intimidade com interlocutores é o número de palavrões que Bolsonaro troca com eles. No caso de Toffoli, diz o texto, “o fluxo atinge o grau dez e começa antes mesmo de assessores deixarem a sala”. É neste capítulo, em especial, que a jornalista relembra o episódio da censura imposta a Crusoé. “A reportagem (O amigo do amigo de meu pai) não fazia nenhuma acusação ao presidente do STF, limitava-se a revelar o apelido pelo qual o identificava Marcelo Odebrecht. Ainda assim, Toffoli se sentiu ofendido e determinou a Alexandre de Moraes que tomasse providências”, atesta Oyama.
Nesse mesmo contexto, a obra polvilha novas pitadas de pimenta sobre os dois polos de poder do governo, por essencialmente populares, mas não necessariamente antagônicos: de um lado o ministro da Justiça, Sergio Moro, do outro, Bolsonaro. Segundo ela, o presidente pensou em demitir Moro em agosto passado. O chefe do Executivo teria cogitado exonerá-lo logo após o ex-juiz criticar a decisão de Dias Toffoli de travar as investigações iniciadas com base em dados do Coaf, blindando o senador Flávio Bolsonaro – filho “01” do presidente – no caso Queiroz. “Vou pagar para ver”, chegou a dizer o mandatário. Bolsonaro, no entanto, foi demovido da ideia pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno. De acordo com a jornalista, Heleno já havia esgotado seu arsenal de argumentos em favor de Sergio Moro, mas tentou descarregar uma última bala. "Se demitir o Moro, o seu governo acaba”, disse o militar à época. Ao encaixar um elogio ao ministro em discurso na ONU, Bolsonaro mostrou que havia entendido a mensagem de Heleno.
Nem sempre, porém, o presidente se dobrou aos conselhos de seus auxiliares. Um militar, segundo o livro, define Bolsonaro com um neologismo: “inassessorável”. Para justificar o epíteto, a obra narra um episódio capaz de ilustrar uma espécie de teimosia atávica presidencial, em que ele não se esforça para fazer ouvidos moucos a conselhos ululantes de tão óbvios. Em julho de 2018, treinado para uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o então candidato foi informado de que seria questionado sobre seu livro de cabeceira. “Diz que é uma biografia do Churchill”, sugeriu Bebianno, então assessor de campanha e presidente do PSL. Ao que Bolsonaro respondeu: “Esse nome eu não vou lembrar”. “Então diz que é a Bíblia”, replicou Bebianno. Bolsonaro, na hora, aquiesceu. Indagado pelos jornalistas, respondeu sem titubear: “A verdade sufocada”, do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. “Os assessores do candidato se entreolharam num silêncio resignado”: Bolsonaro não havia feito o dever de casa.
Já Oyama, como se nota, foi muito além do dever de casa jornalístico ao pelear de maneira discreta por todo ano de 2019 pelo eixo Brasília-Rio de Janeiro a fim de desvelar o que os novos inquilinos do poder preferem manter estrategicamente ou mesmo por instinto longe dos raios solares. O governo pode até não ser encarado sob outro prisma depois do livro, previsto para ser lançado no próximo dia 20. Mas ao buscar caprichar nas tintas da autenticidade factual, a obra faz com que o leitor despeça-se dela mais bem informado sobre o irrequieto primeiro ano da gestão Bolsonaro do que entrou.
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Comentários (10)
Sirlei
2020-02-04 14:33:44O livro ,com a riqueza de detalhes que Crusoé expõe ,deve acender a vela do Presidente,mesmo não sendo procissão,o informante é o protótipo do papagaio de pirata,está em seu ombro. Essa historinha de jornalista proteger seus informantes,que prefiro dar outro nome,como dedo duro,já detonou o País e digo mais o levará ao caos. 90% da mídia não quer que esse governo dê certo,é uma pena e a pergunta que não quer calar,qual proprietário de uma importante emissora está por trás do atentado a Bolsona
Antonio
2020-02-02 11:30:58A Revista Crusoé considera a "autenticidade factual" como algo verdadeiro, sem sequer checar a veracidade das afirmações de uma jornalista que já mostrou suas tendências esquerdistas . Isto chama-se desonestidade intelectual. Muito triste para uma revista que eu julgava imparcial.
Uira
2020-01-28 22:26:41Trata-se de se SEPARAR O JOIO DO TRIGO, mas não no sentido mais MORALISTA e PURISTA, mas no sentido PRAGMÁTICO, separando aqueles que ainda foram CAPAZES de preservar um MÍNIMO DE PUDOR daqueles que perderam COMPLETAMENTE o SENSO DE DECÊNCIA. Trata-se de se separar SOCIOPATIA de DESRESPEITO À LEI. Este deveria ser o limite: a SOCIOPATIA.
Uira
2020-01-28 22:18:23Mas o que parece ser realmente importante é que há todos os ELEMENTOS para que tanto a DISTOPIA quanto o QUADRO SISTÊMICO DE CORRUPÇÃO sejam atingidos em seu CERNE e desbastados a níveis CONSIDERADOS NORMAIS. Diante de tudo o que se viu até agora, o que parece não faltar são ELEMENTOS para se DEMONSTRAR CABALMENTE O ELEVADO NÍVEL DE DISTOPIA vigente no país. Conforme o deputado Wilson Santiago comprova, nem isto certamente será o bastante para os CORRUPTOS deixem de ser tão DESPUDORADOS.
Uira
2020-01-28 22:13:10Sendo assim, não haveria realmente uma SAÍDA POSSÍVEL que pudesse ser realizada sem RUPTURA INSTITUCIONAL? O ano de 2019 não foi só para se LIMPAR o país da CORRUPÇÃO, mas estabelecer os ALICERCES para um PROCESSO PROFUNDO, mas o MENOS TRAUMÁTICO possível, pelo menos em TERMOS INSTITUCIONAIS. É claro que será necessário realizar-se REFORMAS e ALTERAÇÕES para evitar que o QUADRO SISTÊMICO DE CORRUPÇÃO hj vigente volte a se restabelecer.
Uira
2020-01-28 22:04:06Tal coisa só poderia ser realizada com MUITO PRAGMATISMO, pois requer uma SENSIBILIDADE para se lidar com a EXCEPCIONALIDADE da situação. Apesar disto, os VERDADEIROS EMPECILHOS para um CONSENSO geralmente estão naquilo que cada PARTE aceita ou não abrir mão, sobretudo pq há algumas coisas que não são passíveis de serem RELEVADAS, tais como um ATENTADO A CANDIDATO À PRESIDENTE ou uma ação massiva de QUEBRA DE SIGILO TELEMÁTICO de centenas, senão de milhares de CIDADÃOS.
Uira
2020-01-28 21:49:21Como é possível que se coloque um FIM na DISTOPIA e no MAIOR ESQUEMA DE CORRUPÇÃO DA FACE DA TERRA sem que os TRÊS PODERES instituídos não sejam parte da SOLUÇÃO DO PROBLEMA? Não é, pelo menos não sem uma RUPTURA INSTITUCIONAL e o EMPREGO DA VIOLÊNCIA para remover as CÉLULAS CANCERÍGENAS. A SAÍDA VIOLENTA pode até parecer atraente, mas ela é tão infame quanto o PROBLEMA que se quer resolver. Portanto, não há SAÍDA FÁCIL para se resolver a QUESTÃO DA CORRUPÇÃO no Brasil.
Cleonor
2020-01-22 13:46:01Nao vou ler e nem comprar esse livro, e nem prestigiar essa jornalista que pensa que é a deusa da verdade
Joaquim
2020-01-18 07:48:05É sempre bom ler uma narrativa honesta sobre os bastidores do poder. Difícil é o trabalho de apurar a verdade, porque nesses ambientes, ela se esconde muito bem.
Soraia
2020-01-15 12:26:34Deu água na boca, vai ser uma tortura esperar até receber o livro.