Morre o homem que derrotou Bolsonaro na praia de Copacabana
Márcio Antônio do Nascimento Silva foi quem plantou de volta na areia as cruzes em homenagem às vítimas da covid que um militante bolsonarista havia derrubado

O taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva morreu aos 58 anos, no Rio de Janeiro, de problemas cardíacos, no dia 4 deste mês. A notícia ficou um tanto perdida no meio da enxurrada de factoides desta que deve ser a mais baixa campanha de segundo turno que já se viu no país. É uma pena, pois Nascimento Silva merece todas as homenagens, por um singular gesto de decência em tempos obscenos: foi ele o homem que plantou de volta na praia de Copacabana as cruzes que a ONG Rio da Paz lá colocara em homenagem às vítimas da Covid 19 – e que haviam sido derrubadas por um militante bolsonarista. Nascimento Silva sequer tinha relação com a ONG ou com sua montagem fúnebre. Ele estava passeando pela praia quando viu a ação do vândalo. Ficou indignado com o desrespeito à memória dos mortos.
A cena se deu em junho de 2020, quando as vítimas fatais da Covid no Brasil eram 40 mil. Entre elas, estava Hugo, filho de Nascimento Silva, morto aos 25 anos.
“Respeita a dor dos outros”, disse Nascimento Silva ao homem que derrubara as cruzes negras na areia.
***
Os mortos hoje passam de 687 mil. Embora baixa em comparação aos picos de 2020 e 2021, a média móvel de mortes pela Covid 19 está em alta. Ninguém mais fala disso. Enquanto escrevo, na quarta-feira 12, Bolsonaro está em Aparecida, redescobrindo que é católico (ou que os católicos também votam). Lula, em comício no Rio, sugere que o presidente está de alguma forma associado ao assassinato de Marielle Franco. E este nem é o pior momento da campanha: o país já andou inflamado por discussões em torno do satanismo de Lula e do canibalismo de Bolsonaro.
A pandemia deixou a arena pública. Certo, outros tantos problemas crônicos do país tampouco vêm sendo discutidos, e o candidato que desponta como favorito na eleição do dia 30 nunca esclareceu minimamente que orientação pretende dar à economia. Mas me surpreende que o trauma que foi a Covid 19 comece a parecer distante agora que o vírus mata menos de cem pessoas por dia. As cenas de desespero em portas de hospital onde faltaram tubos de oxigênio começam a ser cobertas por uma precoce tonalidade sépia.
Quando as estatísticas de contágio e morte estavam no pico, imaginava-se que o vírus Sars-CoV-2 teria efeitos macroscópicos no caldo de cultura nacional. Não foi assim. À frente do governo de São Paulo, João Doria apostou seu futuro político na vacina (e ainda bem que o fez, pois isso aumentou a pressão para que um governo federal omisso também buscasse imunizantes). Sua candidatura presidencial não decolou e ele se viu constrangido pelo próprio partido – o hoje irrelevante PSDB – a desistir dela. Enquanto isso, o ministro do caos sanitário, tema de minha coluna anterior, elegeu-se deputado federal com a segunda maior votação do Rio de Janeiro. Tenho a impressão que até o epíteto de “genocida”, que os opositores tentaram afixar em Bolsonaro, anda em baixa. O marketing petista descobriu que vincular o presidente ao demônio Baphomet causa mais danos eleitorais do que expor sua incúria e sua insensibilidade diante da maior crise sanitária do século.
O desastre não se limita a um só vírus. A cobertura vacinal da poliomielite, que há poucos anos ficava em torno de 95%, mal ultrapassou os 50% na campanha de vacinação deste ano, que foi prorrogada para tentar recuperar esse atraso. No debate do primeiro turno na Band, Vera Magalhães levantou dados sobre o fiasco do governo na vacinação. Bolsonaro respondeu com as patas, dizendo que Vera é uma “vergonha para o jornalismo”.
***
“Respeita a dor dos outros.”
O ato do Rio da Paz em Copacabana tinha evidente sentido político. A cruzes colocadas junto a covas na areia representavam uma crítica – justa e necessária – ao modo como o governo Bolsonaro conduzia a pandemia. Ao mesmo tempo, elas rendiam homenagem aos mortos pela Covid 19. Nascimento Silva percebeu seu sentido transcendente: a evocação dolorosa daqueles que morreram isolados em UTIs. Quando recolocou as cruzes em seus lugares, ele não falou em genocídio, como tantos fazem, nem em incúria e caos sanitário, como eu fiz há pouco. Falou de dor – a "dor dos outros", que era sua dor como pai de Hugo.
Também em seu depoimento à CPI da Covid, no ano passado, a linguagem do taxista foi mais emotiva do que política, embora tenha criticado a ausência de empatia de Bolsonaro. “Não pude dar um abraço no meu filho, não pude dar um último beijo”, lamentou, ao relatar que, por razões sanitárias, foi impedido de ver o cadáver de Hugo, que permaneceu dentro de um saco. "Não consegui fazer nenhum dos atos simbólicos. Então, minha dor não é mimimi. Não é. Dói pra caramba mesmo. Dói, entendeu?" Meses antes, o presidente, em um de seus destemperos, havia reclamado dos que faziam “mimimi" em torno da pandemia.
Não há tradução para o gesto e para as falas de Nascimento Silva na linguagem estúpida da guerra ideológica ou no baixo calão da campanha eleitoral que está em curso. Em seu testemunho de um sofrimento íntimo e intransferível, escancara-se toda a degenerescência moral do governo Bolsonaro. Eis aí um feito que deputado André Janones, o criador de fake news sinceras para a campanha de Lula, jamais alcançará com suas lives e tuítes.
***
Fiquei tentado a um encerramento grandiloquente. Diria que Márcio Antônio do Nascimento Silva foi um instantâneo da consciência brasileira, arremedando assim Anatole France quando afirmou, em sua eulogia a Émile Zolá, que autor do J’accuse foi “um momento da consciência humana”.
Mas não: a consciência e a humanidade de Nascimento Silva pertenciam a ele somente. O Brasil ainda não fez por merecê-las. Talvez um dia.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (10)
Luiz
2022-10-17 19:53:46Podia ter feito a homenagem na casa dele. Vou fazer uma homenagem às custas dos demais transeuntes. Vou alocar 1 hectare na praia de copacabana para a minha "homenagem" (que ás vésperas de uma eleição presidencial se confunde com marketing disfarçado). Vou espalhar 200 litros de óleo cru para lembrar do rombo na petrobrás e os prejuízos causados ao país pelos Cerverós e cúmplices na época do outro candidato. Por que não uma cruz imensa com a foto de Celso Daniel? Homenagem? Ou Marketing?
André
2022-10-17 18:23:22Proponha uma solução, Crusoe. Por que não foca no macro, no país que começa a ver uma luz no fim do túnel, em vez de ficar com uma lupa em detalhes irrelevantes e biliosos, quando o que está em jogo no momento eh a opção entre o liberalismo com meritocracia ou o retorno do clepto-socialismo caboclo do PT?
Míriam
2022-10-17 16:13:32Que texto tocante. Bela homenagem a um pai, dentre tantos, que perdeu seu filho e foi privado da despedida, mas foi capaz de um gesto de tanta nobreza. Gestos e atitudes decentes e acolhedoras estão em falta por aqui. Uma pena.
BozoLula Desmiolado
2022-10-17 13:35:04Sofremos desgraçadamente nesse período de pandemia. Sofremos de forma multiplicada. Fomos enganados, iludidos e assassinados por quem deveria de zelar e nos proteger. Mas brasileiro é sadomasoquista, olha aí nosso coveiro arrebatando metade da população com seus ideais de ódio, preconceito e morte. Isso tendo como adversário um corrupto ex-presidiário. É, brasileiro gosta de sofrer mesmo...
Fernando Caiuby
2022-10-17 13:34:27O falecido, que Deus o tenha, não derrotou o Bolsonaro. Desfez a atitude reprovável de um outro ser humano que, casualmente, era bolsonarista. Querer creditar a culpa a Bolsonaro, como tenta a manchete, é desonestidade intelectual e sem vergonhice da pior espécie.
Marina
2022-10-17 13:29:44Merecida e bela homenagem! Lhe sou grata pela importante reflexão.
Gisa
2022-10-17 13:21:06A pandemia traumatizou-me por toda a vida, relembrei o sofrimento desse homem que perdeu um filho querido e muitos outros que perderam parentes, imaginei uma mãe, amorosa como eu, a chorar a morte do filho, como uma cunhada que perdeu o seu primogênito. Lembrei-me da angústia pela minha filha, com imunidade baixa, precisando de cuidados intensivos, hospitais lotados, desejei ardentemente uma vacina para ela. Perdi noites de sono pensando no que fazer, no que poderia acontecer a mim e a ela ...
MARNIO JOSE SIGNORELLI TEIXEIRA PINTO
2022-10-17 13:19:16Critica sem responsabilidade é muito fácil e gratuita
Luiz
2022-10-17 13:09:15Excelente artigo. Parabéns!
Eduardo
2022-10-17 12:48:04Começo pelo seu final: concessivo de esperança o que faz perder a grandiloquência expectante. Não dá mais de esperar dias, anos, séculos... O milênio redescobriu a peste e, com ela, novas palavra da moda para se livrar do muito medo dominante. O ex-erectus (será que foi algum dia?) inventou grandes "defesas" para justificá-lo. Uma penca de palavras compondo neo-frases que o tornam ainda mais exclusivos para o egoísmo: novo normal, novos tempos ou tempos estranhos... (olhar perdido no infinito