RS via Fotos PúblicasNinguém acredita que eleições venezuelanas deste domingo ocorrerão de forma justa

O velho professor venezuelano

A situação da Venezuela neste final de semana é mais delicada do que a do Brasil em 2014. Um catedrático em visita ao Brasil, muitos anos atrás, profetizou o ocaso do país
26.07.24

No auge do milagre chavista, com os países da América do Sul surfando no super ciclo das commodities, recebemos na universidade uma delegação de professores e estudantes venezuelanos. O líder da missão fez a palestra de abertura e surpreendeu a todos com o tom pessimista com que narrou a deterioração democrática que já ocorria sob o comando de Hugo Chávez, morto em 2013.  

Com um velho ar aristocrático, o professor falou das políticas populistas, do cerceamento da imprensa, da desorganização dos partidos tradicionais, do crescente aparelhamento do Estado e do discurso de divisão social.  

As palavras provocaram um anticlímax junto à plateia que esperava notícias bem diferentes, otimista que estava em relação aos resultados da onda rosa de governos esquerdistas que tomavam o continente. Ao final,em vez de prestar atenção nos avisos vindos do colega acadêmico, a imensa maioria deu de ombros e classificou a palestra como “ranço da classe” 

Pouco mais de uma década depois, às vésperas de uma eleição dramática que ninguém acredita que ocorrerá de forma justa, não sei se o antigo professor ainda leciona, se mora na Venezuela ou teve que se exilar ou mesmo se está vivo. Seu país, por sua vez, seguiu, uma tragédia após a outra, o roteiro sinistro traçado naquela noite.  

Presos políticos e milhões desterrados, infelizmente, são a face de um debate que os analistas são obrigados a fazer trazendo o ponto de vista institucional. Nesse sentido, a pergunta que deve ser feita é se toda essa turbulência poderia ter sido evitada ou, em outras palavras, quais motivos de a estabilidade política ser um recurso tão escasso por aqui.  

No seu sentido moderno e formal, a democracia é um sistema que promove uma competição mais ou menos compactuada entre os grupos políticos de um país. Para que funcione, é preciso um acordo em torno das regras de disputa política e do processo decisório nacional, com as partes exercendo seus papéis no desenho e implementação de políticas públicas.  

Se o consenso entre os grupos é essencial, o primeiro sintoma é o desacordo em torno das regras. Por isso questionamentos sobre a confiabilidade nas urnas eletrônicas no Brasil ou dúvidas sobre o processo de votação nos Estados Unidos são tão importantes. Não são causa, mas sintoma de que as facções políticas discordam em um nível acima do desejável.  

No caso da Venezuela, antes de ser eleito pela primeira vez em 1998, Hugo Chávez havia tentado dar um golpe de Estado em 1992, sinal de que tinha pouco apreço pela regra do jogo democrático. Embora a história política até aquele período mostrasse uma estabilidade invejável, com dois partidos se sucedendo civilizadamente por 50 anos, por baixo da superfície havia um vulcão de demandas que o sistema político não conseguia processar ou sequer registrar. O resultado foi uma erupção de novos partidos políticos e do próprio Chávez.  

Aqui há uma combinação de fatores extremamente danosa para a Venezuela: ascensão do líder antissistema, a decadência das forças tradicionais e uma montanha de dinheiro para políticas populistas em uma sociedade desigual e com uma massa historicamente excluída das riquezas do petróleo. Tudo isso possibilitou uma concentração de poderes sem limites na figura do presidente, algo que sempre termina mal.  

Em comparação ao Brasil, por exemplo, a vitória do PT em 2002, quatro anos após Chávez ocupar o Palácio de Miraflores, não foi acompanhada pelo declínio das forças tradicionais. O PT nem passou perto de fazer maioria no Congresso e a economia mais diversificada e sofisticada manteve o poder distribuído entre diversas forças. O ciclo de commodities permitiu a Lula conquistar uma base popular fiel, mas o país continuou tendo eleições competitivas e oposição operante.  

Naqueles anos longínquos, era comum escutar que, com a esquerda chegando ao poder pela via democrática, a transição estava completa. Foi um amigo, naquela mesma noite do preocupado professor venezuelano, que me disse que essa visão era um erro. Para sermos considerados uma democracia madura, seria necessário que a esquerda devolvesse o poder democraticamente.  

Nem na Venezuela e nem no Brasil pode-se dizer que isso aconteceu. Aqui, a perspectiva de derrota do PT em 2014 só não se realizou em razão de uma das campanhas mais virulentas da história, com a ex-presidente Dilma Rousseff “fazendo o diabo” em termos de ataques a rivais, uso de financiamento ilegal e um grande estelionato eleitoral quanto às condições reais da economia. O mal-estar foi tão grande que praticamente não conseguiu governar até o processo de impeachment.  

A situação da Venezuela neste final de semana é mais delicada do que a do Brasil em 2014. Já era quando o professor venezuelano veio fazer seu alerta e pouca gente escutou. Mas, nesse final de semana, sua voz voltou a ser ouvida naquele auditório universitário.  

Leonardo Barreto é cientista político e sócio da I3P Risco Político

 

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  1. Essa coluna envelheceu muito bem, após o golpe eleitoral perpetrado por Maduro e seus capangas. Infelizmente a situação por lá já não pode mais ser resolvida pelas vias democráticas. Lamentável.

  2. Imagino esse professor venezuelano se esteve numa palestra em uma universidade pública brasileira. Se não saiu vaiado foi porque houve uma época onde havia maior respeito aos professores. Mas, estou muito apreensiva e esperançosa que Maduro caia dessa vez. Claro que virá um banho de sangue, mas que seja do esquartejamento desse ditador inumano.

  3. A ‘maldição do petróleo’, que trata da desindustrialização dos países produtores, foi pior lá, na Venezuela, por causa da deterioração política. Aqui, o Petrolão foi contido pela Lava Jato, dificultando a conclusão do domínio pretendido pelo PT

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