Fernando Frazão/Agência BrasilO que sair das urnas, independentemente de ser de direita ou de esquerda, não é um problema da democracia

A batalha ideológica pela democracia

Conceito foi resgatado como uma regra para permitir que estado moderno funcione. Parte significativa da esquerda tenta isolar concorrentes ao cobrar ainda mais dela
09.08.24

O que é democracia para você? Por detrás desta pergunta existe, hoje, a maior batalha ideológica da história e tem tudo a ver com o cenário de polarização dos dias atuais. Para contar entender por que, é preciso passear um pouco pelo desenvolvimento recente do pensamento da esquerda. 

Um intelectual italiano chamado Antônio Gramsci (1891-1937) tem um papel especial nesse tema. Preso pelo regime fascista de Benito Mussolini, o político e intelectual comunista escreveu no cárcere todo seu pensamento que, após sua morte, foi organizado e publicado. 

Poupando o leitor das sofisticadas categorias conceituais, o importante é saber que Gramsci defendeu que “apenas” tomar o Estado, pela via democrática ou usando meios violentos, não seria o suficiente. Seria necessário, segundo ele, trabalhar pelo lado dos valores e da cultura, criando uma onda de pensamento que, quando se tornasse hegemônica, faria com que a tomada do poder fosse algo protocolar.  

Com a União Soviética e toda sua máquina burocrática funcionando a todo vapor, Gramsci demorou para se tornar ponta de lança da esquerda mundial. Após o colapso do mundo socialista em 1989, no entanto, intelectuais marxistas ficaram completamente perdidos e em busca de um porto. Acharam guarida nos estudos de democracia, que foram associados às ideias de Gramsci, e trocaram estudos baseados na ideia de classe, que é um conceito econômico, tendo relação com a posição que o sujeito ocupa no processo produtivo, por categorias identitárias, com foco nas distinções de gênero e raça, por exemplo.  

A partir daí, a ideia de democracia, que é política, substituiu a percepção de socialismo, que é econômica, como centro de pensamento e ação. Mostrando ter aprendido com Gramsci, movimentos de esquerda foram além da disputa de pleitos eleitorais e buscaram se apropriar da definição de democracia, que passou a ser obrigatoriamente sinônimo de políticas de orientação progressista. O pulo do gato é excluir da categoria de “democrata” todo mundo que não for “progressista”. Está aí o roadmap para alcançar a hegemonia.    

A democracia, enquanto fenômeno histórico, existiu brevemente entre os gregos antigos. Seu conceito não tinha nenhum objetivo específico, sendo apenas uma “forma de governo” na qual o direito de entrar na arena pública e participar das decisões da pólis foi amplamente estendido.  A experiência ficou adormecida por mais de mil anos para ser resgatada em um contexto completamente diferente.   

Na construção dos regimes políticos modernos, que conjuga (i) a necessidade de abrir o sistema para as pessoas recém-chegadas do campo em largos processos de urbanização, (ii) a divisão do poder em diversas instâncias para que um autocontrole mútuo fosse possível para evitar abusos contra as liberdades individuais e (iii) a criação de mecanismos de controle sobre a burocracia, o conceito de democracia foi resgatado como uma regra para permitir que tudo isso funcione. De tempos em tempos, os grupos organizados, facções ou partidos políticos, que competem pelo poder em uma sociedade realizam eleições e combinam que quem receber mais votos governa e respeita o direito do outro de fazer oposição e tentar a sorte novamente ao fim do mandato.  

Essa ideia de democracia é chamada de procedimental ou minimalista porque não tem nenhum conteúdo implícito nela. Trata-se de uma regra de convivência encontrada por sociedades plurais que precisam achar uma maneira pacífica de resolver seus conflitos internos. O que sair das urnas, independentemente de ser de direita ou de esquerda, não é um problema da democracia.  

Correntes de esquerda, no entanto, refutam essa noção – que é fundamentalmente prática – e passaram a advogar uma ideia de democracia substantiva ou maximalista na qual o sistema político deve obrigatoriamente realizar um ideal, normalmente ligado a propostas igualitaristas. Nesse sentido, se o que sai da urna não estiver pactuado com o manual, tem-se um problema que “coloca em risco a democracia”.   

Há uma diferença em fazer uma discussão sobre como a democracia pode funcionar melhor (seria ótimo que as pessoas tivessem condições materiais suficientes para exercer o voto de opinião puro, por exemplo) ou sobre que tipo de sociedade ela deve obrigatoriamente proporcionar. Esse “detalhe” cria as condições para uma divisão entre “nós” e “eles” e dá licença para transformar qualquer eleitor não progressista em um fascista. Por isso, se alguém perguntar na rua “o que você entende por democracia”, saiba que isso significa que você está atolado na trincheira da maior batalha ideológica do seu tempo. 

 

Leonardo Barreto é cientista político e sócio da I3P Risco Político

 

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  1. A esquerda radical não é democrata mas, como sabe que a democracia tem amplo apoio da sociedade, utiliza o conceito contra seus adversários políticos, chamando-os de anti-democratas e de perigos para a própria democracia que ela clama, falsamente, defender. É cínico e maquiavélico, mas é uma arma muito mais eficaz do que o gasto e esfarrapado discurso socialista econômico puro

  2. Imbecil do bolsonaro não leu nada de como enfrentar isso. Pior o charlatão nem sabe que é um vírus

  3. Gostei desses esclarecimentos. Acho que vou entender melhor um pouco melhor os debates eleitorais que já começaram

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