Os argumentos furados de Gilmar para blindar o STF
Magistrado cita fatos históricos para falar da ameaça de impeachment de ministros da Corte, mas isso nunca aconteceu na história republicana brasileira
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes (foto) concedeu uma liminar nesta quarta, 3, tentando blindar a Corte de possíveis pedidos de impeachment de ministros como ele.
Em um documento de 71 páginas, Gilmar tenta pintar todo e qualquer pedido de impeachment como algo de natureza política, que terminaria por afetar a independência do Supremo e enfraquecer o sistema de freios e contrapesos.
"É importante frisar que a prática do impeachment de ministros, quando utilizada de forma abusiva ou instrumentalizada, não se limita a um ataque a indivíduos, mas se configura como um ataque à própria estrutura do Estado de Direito. Quando membros da Suprema Corte são removidos ou ameaçados com base em motivações políticas, a mensagem transmitida é a de que o poder judicial não pode, ou não deve, exercer suas funções de controle de constitucionalidade, de aplicação da lei penal e de responsabilização de agentes ímprobos de maneira autônoma", afirma Gilmar.
"Esse enfraquecimento da separação de poderes abre caminho para um ambiente autoritário, no qual o Executivo ou outros atores políticos dominam as instituições jurídicas. Quando a independência do Poder Judiciário é minada, não apenas a efetividade dos mecanismos de responsabilização é comprometida, mas também a garantia dos direitos fundamentais fica seriamente abalada. Na verdade, a subordinação do Judiciário aos demais Poderes enfraquece o próprio sistema de freios e contrapesos que sustenta a democracia liberal."
Ao dizer essas coisas, Gilmar distorce intencionalmente conceitos básicos da Constituição brasileira e do direito.
Os pedidos de impeachment não são uma ameaça ao sistema de freios e contrapesos. Pelo contrário, são parte dele.
No conceito da separação de poderes, introduzido por Montesquieu, a ideia é a de que as pessoas tendem a abusar de seus poderes. Para impedir isso, é preciso que outro poder possa intervir. Esse controle de um poder pelo outro é visto como algo benéfico e necessário.
O impeachment de ministros do Supremo nada mais é que uma maneira de o Legislativo controlar abusos no Judiciário.
Para Gilmar, contudo, a independência e a democracia só podem existir quando o Judiciário fica a salvo de qualquer interferência.
Ameaças
Para sustentar o seu ponto — de que o Judiciário precisa ser protegido contra pedidos de impeachment — Gilmar retoma fatos da história do Brasil em que houve avanços contra o STF.
Ele cita a ditadura de Getúlio Vargas, que reduziu o número de juízes. Fala da ditadura militar, que aumentou o número.
Também cita o decreto de 1969 que cassou três ministros.
Mas todos esses casos partiram do Executivo, não do Legislativo.
Marotamente, Gilmar não cita casos de impeachment de ministros do STF pelo Senado, até porque eles não existem.
Dizer que o impeachment de ministros do STF é uma problema que impacta na atuação dos juízes só faria sentido se eles estivessem acontecendo aos montes, o que não é verdade.
Os casos mais parecidos, em que o Legislativo foi o protagonista da intervenção, foram ainda no governo de Floriano Peixoto, em 1894, quando cinco indicações foram reprovadas na sabatina.
Venezuela
Gilmar ainda escreve um parágrafo inteiro para falar de Venezuela.
Virou moda para todo brasileiro que se diz defensor da democracia no Brasil citar o país comandado por Nicolás Maduro.
"Na Venezuela, membros da Suprema Corte foram removidos dos cargos, após a patente e manifesta intervenção promovida por Hugo Chávez no Tribunal. Além de aumentar o número de membros, facilitou, em demasia, o procedimento de impeachment, passando a prever a necessidade de maioria simples do Senado para tanto", escreve Gilmar.
Mas não foram processos de impeachment que permitiram a Hugo Chávez dominar o Tribunal Superior de Justiça. Foi o aumento do número de juízes e a indicação de chavistas.
O documento de Gilmar parece reconhecer esse fato mais adiante em uma frase truncada: "Embora lá a condenação prescindisse de maioria qualificada de 2/3 (dois terços), diversamente do que sucede no Brasil, o fato é que a facilidade de instauração já provoca abalos significativos à independência judicial".
Resumindo o raciocínio do decano: o fato de na Venezuela terem instituído a possibilidade de impeachment já estaria afetando a independência do Judiciário.
Contudo, como a história venezuelana demonstra, há questões muito mais relevantes que comprovadamente ajudaram a enterrar a democracia por lá.
A verdade é que Gilmar não quer a independência de Poderes.
O que ele quer é blindar o STF, mesmo que para isso seja necessário atropelar a Constituição e distorcer a realidade.
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