Sobre cães docilmente "supremos"
No Brasil contemporâneo, o Senado se tornou apenas o biombo cerimonial de aprovações previamente costuradas entre partidos fisiológicos e gabinetes sedentos de lealdade
É preciso começar pelo mais singelo: no Brasil, hoje, para ser ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) não é necessário possuir reputação ilibada nem saber jurídico comprovado (embora ambos constem, hipocritamente, como exigências formais do cargo).
Trata-se, então, de um rito farsesco, de uma encenação de nobreza institucional que se perpetua para ocultar a verdade crua: o STF é, em muitos casos, um feudo de conveniências políticas, um reduto de obediência cortejada, em que o mérito, se não for convertido em instrumento de submissão, é pura ameaça.
Na Roma antiga, o Senado era, ao menos em sua concepção republicana, espaço de razão pública e virtude cívica, ainda que a corrupção sempre rondasse.
No Brasil contemporâneo, o Senado se tornou apenas o biombo cerimonial de aprovações previamente costuradas entre partidos fisiológicos e gabinetes sedentos de lealdade. O que se busca, na seleção dos futuros togados supremos, é menos a sabedoria de Ulpiano e mais a mansidão de um cão de colo.
Não à toa, na política de hoje, o latido é mais valioso que o argumento; o afago ao governante mais eficaz que a coerência constitucional. O novo critério informal (e por isso ainda mais eficaz) é a obediência, o servilismo cordial, o comprometimento com a agenda do poder que indica e tutela.
E quando não há saber jurídico notável? Invoca-se o outro critério, o espiritual... e não no sentido de uma espiritualidade socrática, da alma que interroga o justo e o injusto, mas da religião como moeda de troca, como forma de compra de bancadas, de fidelidades.
No lugar do logos, o púlpito. No lugar da razão, a conveniência. A toga, nesse contexto, vira batina disfarçada ou paletó de pastor bem-posicionado. Até mesmo o “Messias” político procura bênçãos e alianças com líderes religiosos não por fé, mas por cálculo. A religião, aqui, é cifra e não transcendência.
Ora, Sócrates, ao se defender na Apologia, não pediu clemência, não rogou a deuses e nem se curvou ao poder vigente.
O filósofo grego afirmou que sua missão era incomodar, como o mosquito sobre o cavalo, porque “uma vida sem exame não vale a pena ser vivida”.
Mas o STF atual (salvo exceções mais e mais difíceis de nominar) parece mais disposto a coçar as costas do cavalo adormecido do que a despertá-lo com ferroadas de lucidez.
Um sistema de poder baseado na coerção e não na legitimidade racional sempre buscará domesticar as consciências, não as iluminar. E o mais perigoso tipo de poder é aquele que veste a fantasia da legalidade enquanto conspira contra a própria liberdade.
Se vivêssemos sob os ideais defendidos pelos mais altos defensores da liberdade, saberíamos que uma ordem jurídica autêntica nasce da limitação do poder, e não da sua consagração cerimonial.
“A liberdade individual” diz Hayek, “só é possível onde o poder é disperso e controlado por regras gerais e previsíveis”.
O que vemos, no entanto, é o oposto: uma concentração personalista e uma plasticidade normativa que se dobra aos humores palacianos mais vis e pútridos.
E não se trata de simples crítica à religião, digo logo para que não me acusem de intolerância, pois o que está em jogo aqui não é a fé, mas a prostituição da fé aos interesses de um Estado inchado e de uma elite política desesperada por controle moral sobre o povo.
Enquanto isso, o povo assiste. Uns creem. Outros, descrentes, apenas sobrevivem. E a república, que deveria ser espaço de razão e virtude, se rebaixa à tragicomédia em que o mais submisso é exaltado e o mais brilhante é descartado por “excesso de independência”.
Assim caminha o Brasil: entre deuses convenientes e homens domesticados.
Agora vamos ali... pastores e ministros estão ligando para garantir a próxima vaga... atendam!
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Comentários (2)
PAULO SERGIo SILVA
2025-12-02 16:38:56Parabéns Dennys, pelo excelente artigo! Matérias como essa precisam ser mais difundidas. Se tivéssemos a possibilidade de repassá-la...
Pedro Alcântara de Rezende Júnior
2025-12-02 16:23:18Excelente artigo. Um retrato perfeito da realidade. Parabéns!