O STF censura a imaginação
Alexandre de Moraes proíbe a circulação de uma obra de ficção que tem Eduardo Cunha como personagem, abrindo um precedente perigoso para a liberdade criativa
A acidentada história da publicação e da proibição de Triste Fim de Policarpo Quaresma começa em 1911, quando o romance apareceu, em forma de folhetim, no Jornal do Commercio.
Não houve alvoroço em torno dos capítulos que narram a demissão do personagem do serviço público e sua malograda tentativa de viver da agricultura em um sítio infestado de saúvas.
Os problemas começaram na parte final do livro, que se desenrola no Rio de Janeiro durante a Revolta da Armada. Floriano Peixoto aparece como personagem.
Policarpo Quaresma admira o presidente. Acredita que ele é um homem “tenaz e conhecedor das necessidades do país”.
Recebido no Palácio do Itamaraty para uma audiência breve com o Marechal de Ferro, Policarpo tem esperanças de que ele se entusiasme por suas ideias para desenvolver a agricultura no Brasil. Mas Floriano recebe suas propostas com enfado.
Neste ponto, o narrador intromete-se na história para corrigir a percepção equivocada que o protagonista tem do ditador. Diz que o caráter de Floriano era marcado pela “tibieza de ânimo” e por uma "preguiça mórbida”.
É inequivocamente a voz de Lima Barreto que se faz ouvir nesse perfil de Floriano. Eis a avaliação política arrasadora que o escritor faz do presidente:
"A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a coisa ao grande, o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte.”
Floriano morreu em 1895. Mas seus filhos estavam vivos em 1911. Pressionaram o Jornal do Commercio a suspender o folhetim.
O jornal não cedeu. Lima Barreto até voltou a inserir Floriano em um dos capítulos finais.
Ao sair de cena, o presidente chama chamar Policarpo Quaresma de “visionário" – e o fato de que ele não considere essa palavra um elogio é uma prova de sua mediocridade.
No final de 1915, Lima Barreto lançou Triste Fim de Policarpo Quaresma em forma de livro. Os filhos do ditador desta vez foram à Justiça.
Em fevereiro de 1916, o jornal A Época publicou uma entrevista com Lima Barreto, acompanhada de uma resenha favorável a Policarpo Quaresma.
O escritor diz que, com o novo romance, esperava conquistar a Glória, com maiúscula.
A glória apagou-se na decisão do juiz que deu ganho de causa aos filhos de Floriano Peixoto, sob o argumento de que feria “a honra e a imagem” do segundo presidente do Brasil.
O romance foi recolhido das livrarias.
Exercício de ficção
O que escrevi acima acima é um modesto exercício de ficção.
As citações de Policarpo Quaresma são legítimas, e a história da publicação da obra corresponde aos fatos, que busquei em Lima Barreto – Triste Visionário, biografia escrita por Lilian Moritz Schwarcz.
Mas não houve reação pública dos filhos de Floriano Peixoto ao folhetim. E o livro não foi censurado.
Na República Velha, já se entendia que obras de ficção podem tratar de personagens reais. Ou até maltratar figuras históricas.
Em nossa democracia restaurada, ao contrário, o jogo entre realidade e ficção pode colocar o escritor sob censura judicial.
Alexandre de Moraes mandou recolher das livrarias uma obra que transformava Eduardo Cunha, o arquiteto do impeachment de Dilma Rousseff, em personagem de ficção.
A medida não tem efeito imediato, pois Diário da Cadeia, publicado em 2017, já esgotara sua tiragem.
Mas a obra não poderá ser reeditada na configuração original, que trazia na capa, como autor, “Eduardo Cunha (pseudônimo)”.
Ricardo Lísias, o autor real, já assinou outros livros com o nome próprio, como Divórcio e O Céu dos Suicidas.
Sua opção por se ocultar atrás do pseudônimo, parte de um jogo literário, é legítima.
A alegação original do advogado de Cunha, aceita pela primeira instância, é de que o nome de seu cliente na capa induz o leitor incauto ao erro de imaginar que o ex-deputado escreveu a obra de punho próprio.
Não li o livro (e vai ser difícil lê-lo agora…). Mas acho difícil imaginar um leitor tão ingênuo ou tão parvo a ponto de acreditar que um livro com a palavra “pseudônimo" na capa seja mesmo de Eduardo Cunha.
Com muita propriedade e serenidade, o desembargador Augusto Alves Moreira Junior, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, desmontou esse argumento, lembrando que a folha de rosto do livro informa que se trata de uma obra de ficção.
Diz o desembargador em sua decisão:
"Não há risco de confusão por parte do público, porquanto os leitores poderão verificar que se trata de uma obra literária de ficção, com utilização de pseudônimo, consoante informação que consta da própria capa do livro".
Fica descartada, portanto, a intenção de enganar o leitor. Tudo ali é ficção, a começar pelo autor, assumidamente falso.
Amparando sua decisão de proibir o livro, Moraes cita trechos da sentença em primeira instância, contestada pelo desembargador Alves Moreira.
Lê-se lá essa afirmação espantosa sobre Diário da Cadeia:
"O autor da presente demanda afirma não se tratar de obra de ficção, já que o livro traz fatos, como se fossem reais, sobre sua vida, como o seu nome, de sua esposa, o seu time de futebol e, ainda, o fato de que estava escrevendo um livro”.
Cunha, o autor da demanda, entende que fato real não tem lugar em obras de ficção… Floriano Peixoto, figura histórica, não tem nada que estar conversando com Policarpo Quaresma, invenção de Lima Barreto.
Esse argumento tosco foi acolhido por um ministro da corte máxima do país, que julgou que o uso do nome de Cunha na obra "ultrapassa o mero direito à liberdade de expressão”.
Moraes ainda condenou Lísias, Carlos Andreazza, seu editor à época, e a Record a pagarem 30 mil reais de indenização a Eduardo Cunha.
Já critiquei, nesta coluna, outras decisões do STF que julgo censórias. Talvez porque tenho certa formação literária e já me arrisquei na escrita de ficção, nenhuma me parece tão grave quanto esta.
A decisão de Alexandre de Moraes não apenas tolhe nossa liberdade crítica. Ela também impõe limites à nossa imaginação.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
As opiniões dos colunistas não necessariamente refletem as de Crusoé e O Antagonista
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Comentários (1)
Albino
2025-01-24 07:38:41E aí, senhores senadores, vai ficar tudo por isso mesmo? Até quando? Fico até preocupado pelo meu livro autobiográfico "O Ciclo Gestatório de um Homem", "...talvez o mais profundo mergulho na alma humana desde 'A Interpretação dos Sonhos', de Freud", já que, lá pelo fim do cartapácio (são 700 páginas!), numa pretensa pincelada política, eu imputo a um antigo ex-presidente a pecha de ilusionista, e a um bem atual "verdadeiro Pedro Malasartes, um matuto ladino...".