Despolitização na Justiça
O positivismo jurídico, que exige dos juízes respeito às leis, sem modificá-las no seu conteúdo e na sua intenção, deve prevalecer sobre o neoconstitucionalismo
O ano de 2024 foi recheado de fatos e de episódios que deixaram qualquer brasileiro focado nos acontecimentos nacionais.
A politização da população vem aumentando gradualmente. Isso é um ponto positivo.
Nossa população precisa desse avanço para tomarmos consciência da necessidade de civilidade e de cidadania na construção de um país livre e democrático.
Esse desejo de construção de um país, no entanto, tem se perdido dia após o dia.
O mais triste é ver que a politização tem se infiltrado em um Poder da república que não poderia se render à política: o Poder Judiciário.
Apesar de ser formada por pessoas, essa instituição deve preservar o seu caráter secular: a vontade da lei deve prevalecer; a política é decidida por pessoas eleitas, e não por juízes.
Bem verdade que a politização do Poder Judiciário é um dilema em democracias mundo afora.
contece que no Brasil esse fenômeno vem ganhando corpo e espaço a longos passos, que nos fizeram perder de vista a essência do Poder Judiciário: discrição de juízes, reserva no comentário de debates públicos e convivência apenas profissional e acadêmica com setores da sociedade em geral.
Juízes foram feitos e pensados, desde Montesquieu, como membros de uma parcela do poder destinados a cumprir e fazer cumprir, com tons de definitividade e de imposição, as leis decididas pela arena política, e não participar diretamente dos debates ou de propor construções políticas com maquiagem ou roupagem jurídica, baseadas em princípios.
Política com roupagem jurídica
Vimos isso em diversos momentos nesse ano de 2024.
Vamos aos exemplos: decisão do ministro Flávio Dino de reestruturar a política ambiental de incêndios e de queimadas, com a fixação de prazos para que União e Estados ajam para cumprir determinadas diretrizes; decisão do ministro Luís Roberto Barroso determinando que o governo do estado de São Paulo utilize câmeras corporais obrigatoriamente, com diversas obrigações; voto do ministro Dias Toffoli para mudar toda uma decisão política sobre responsabilização de redes sociais por conteúdos postados em sua plataforma; e assim por diante.
Infelizmente, os exemplos não se resumem ao ano de 2024. Cada vez mais, os exemplos vêm aumentando, com a evidência de que alguns ministros passaram a dar entrevistas a veículos de comunicação sobre o mérito de pacotes econômicos do governo, como foi o caso do ministro Gilmar Mendes.
O volume e a intensidade desses episódios mostram que o caminho para a redução da politização do Poder Judiciário passa por uma reforma ampla.
Uma reforma muito mais profunda do que a se iniciou em 8 de dezembro de 2004, com a edição da Emenda Constitucional nº 45.
As reformas de normas jurídicas, sobretudo as previstas na Constituição, são essenciais.
Porém, mais do que uma reforma de leis, o Poder Judiciário deve passar necessariamente por uma mudança de cultura e de efetivação de comandos legais de proibição de que juízes em geral, inclusive os do Supremo Tribunal Federal, devem manter maior reserva e discrição, sem envolvimento pessoal e com relações profundas além da meramente institucional e profissional que a harmonia dos Poderes exige.
Ter harmonia de Poderes na República não é sinônimo de entrelaçamento de apoios institucionais a medidas governamentais ou, até mesmo, de intromissão em decisões políticas já tomadas.
O Poder Judiciário necessita relembrar os ensinamentos de filósofos, como Montesquieu e Aristóteles, de que juízes devem seguir as decisões políticas que são documentadas em lei.
A mudança de cultura passa por relembrarmos que o positivismo jurídico, proposto por diversos filósofos e teóricos, como Norberto Bobbio, exige dos juízes respeito às leis, sem modificá-las no seu conteúdo e na sua intenção.
A estabilidade jurídica e a menor politização do Poder Judiciário surgirão no momento em que juízes entenderem que não mudarão o mundo numa canetada. Essa responsabilidade é de parlamentares e de chefes do Poder Executivo.
Essas mudanças levarão tempo. Porém, o caminho árduo, complexo e longo não pode nos desanimar de continuarmos a perseguir o certo: construir uma sociedade em que entenda, de uma vez por todas, que juízes são seres humanos e não super heróis, de modo que cabe à política resolver os problemas públicos, seja através da renovação das Casas Legislativas, seja mediante maior participação em iniciativas políticas, como movimentos para mudanças legais e de fiscalização dos Poderes.
Como um grande otimista, digo: sairemos vencedores.
Para tanto, deveremos promover uma mudança de cultura que exige maior participação no mundo acadêmico para relembrar que o positivismo jurídico deve ser o guia da ciência jurídica, e não o neoconstitucionalismo — em que princípios mudam, ao bel-prazer de juízes, as regras decididas pela política —, e requer coragem para moralizar o Poder Judiciário através de mudanças legais para voltarmos a ter respeito às leis, com juízes discretos e sem envolvimento nos debates políticos.
Jonathan de Mello Rodrigues Mariano é procurador federal (AGU/PGF), especialista em direito administrativo econômico pela PUC-Rio e membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (IDARJ)
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Comentários (5)
Amaury G Feitosa
2024-12-20 10:15:15Na civilização sim .. em TUPILÂNDIA DOS MANÉS jamais ...
Pedro Vitor Veiga Silva Magalhães
2024-12-20 08:54:28Excelente texto
Paulo Afonso Alves Dos Santos
2024-12-20 08:20:10E o Lewandovsck que desrespeitou a lei, modificando o conteúdo e a intenção desta no impeachment da Dilma...
Albino
2024-12-20 07:48:44Muito elucidativo!
Avelar Menezes Gomes
2024-12-20 05:45:22A realidade é que esse STF vem se deteriorando dia a dia. Suspeito que a maçã podre que apodreceu todo o cesto foi o Gilmar Mendes, que estragou gente em quem confiávamos, como o Barroso e o Fux. A Carmen Lúcia também foi uma decadência triste de se ver. Parece que só o Fachin ainda não aderiu à politicagem judicial, mas fica a impressão de que é só uma questão de tempo. Os demais, do Tofolli ao Dino, já vieram prontos. Notório saber? Letra morta