ReproduçãoClaudia Sheinbaum, a próxima presidente: eleições diretas para juízes e sucateamento do sistema eleitoral

México: vem aí um novo PRI?

Vitória da candidata de esquerda, escolhida pelo presidente López Obrador, faz mexicanos temerem o retorno da hegemonia de um partido único
07.06.24

O Partido Revolucionário Institucional, PRI, governou o México por sete décadas, de 1929 a 2000, sem deixar espaço para concorrentes. Com controle total do sistema eleitoral, o PRI impedia a vitória dos seus opositores. Sua hegemonia era total. Quem escolhia o próximo presidente era sempre o mandatário de turno, que usava o expediente chamado de “dedazo“: ao apontar o dedo para alguém, essa pessoa já sabia que seria o próximo a comandar o país.

É portanto com certo desânimo que muitos mexicanos voltaram a falar em partido único, em hegemonia partidária e em dedazo. No domingo, 2, a candidata Claudia Sheimbaum venceu as eleições presidenciais com 60% dos votos. Integrante do partido Morena, ela foi a escolhida pelo atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, também conhecido pela sigla AMLO. Entre as reformas que os dois apoiam estão algumas que podem fazer o México retroceder mais de duas décadas, como o sucateamento do Instituto Nacional Eleitoral, o INE, e a submissão do Judiciário ao partido hegemônico, com a instalação de eleições diretas para os juízes da Suprema Corte.

Para saber a probabilidade de essas reformas acontecerem será importante acompanhar a apuração dos votos para o Congresso. Até o fechamento desta edição de Crusoé, ainda faltava cerca de 5% das urnas na apuração preliminar da Justiça eleitoral. Para seguir com as reformas, a coalizão governista precisa de maioria qualificada (dois terços dos assentos) em ambas as Casas do Congresso. Na Câmara, os dois terços estão garantidos. No Senado, a situação deve eleger 83 senadores, dois assentos abaixo da maioria qualificada. Matematicamente, ainda é possível chegar à maioria qualificada. Os resultados definitivos, que decorrem de uma recontagem local dos votos, serão anunciados a partir de sábado, 8 de junho.

Com a maioria qualificada, o governo poderá sancionar reformas constitucionais sem a necessidade de negociar com a oposição. A coalizão governista é dominada pelo partido Morena e inclui apenas outras duas siglas. Em sua primeira coletiva matinal após as eleições, o atual mandatário anunciou que coordenará com sua sucessora a tramitação de um pacotão de reformas constitucionais. A nova Legislatura toma posse no início de setembro, enquanto a presidente assume apenas em outubro. Conhecido como Plano C, em referência a duas tentativas frustradas ao longo do atual mandato, o pacotão de reformas de López Obrador é um perigo para os pesos e contrapesos do Estado.

O alvo principal das reformas do Morena é o Instituto Nacional Eleitoral (INE), equivalente ao Tribunal Superior Eleitoral no Brasil. O Plano C sucateia o INE por meio de cortes no orçamento e da eliminação de funções e dependências. O enxugamento do órgão, que atingiria um terço dos funcionários, prejudicaria a formação de mesários e o recenseamento eleitoral, além de concentrar funções no plano federal, em detrimento de autoridades locais. O atual presidente, também conhecido por suas iniciais, AMLO, alega funções duplicadas e corrupção no órgão. Ao longo da campanha, Sheinbaum defendeu a reforma do padrinho ecoando os mesmos argumentos.

A rixa de López Obrador e seus aliados com o INE é antiga. O atual mandatário nunca reconheceu as derrotas nas eleições presidenciais de 2006 e 2012. Até hoje, eles alegam fraude, apesar de não apresentarem evidências. A esquerda mexicana deslegitima a Justiça eleitoral desde muito antes de Jair Bolsonaro pensar em chegar ao Palácio do Planalto.

Minar o INE faz parte de uma estratégia de construção de uma hegemonia. É um ponto em comum com governos de viés autoritário na América Latina”, diz Leopoldo Maldonado, diretor da ONG Artigo 19 no México. Se o INE acumula funções demasiadas, como no monitoramento do tempo de menção a cada candidato nos meios de comunicação, é porque o sistema eleitoral mexicano é “baseado na desconfiança”, afirma Maldonado. Fraudes definiram as sucessões presidenciais entre 1929 e 1994, com o PRI intervindo diretamente na Justiça eleitoral desde a década de 1940. Na eleição de 1988, a primeira com uso de computadores, o governo liderado pelo PRI interrompeu a divulgação da contagem de votos no meio da apuração quando aparentava uma virada da oposição. A fraude, comprovada posteriormente, impulsionou a transição democrática no México, que, em 2000, viu a primeira alternância de poder após 70 anos ininterruptos de PRI.

O pacotão de reformas do Morena também atinge o Poder Judiciário. Na coletiva de imprensa matinal da segunda, 3, o atual presidente López Obrador citou essa reforma em primeiro lugar. AMLO quer que juízes e ministros de Cortes sejam eleitos pelo voto popular. Sua sucessora apoia a ofensiva. “Os juízes hoje estão cooptados por um pequeno grupo… Ou os juízes estão a serviço do povo?”, disse Sheinbaum na primeira semana de campanha oficial, no início de março.

O problema em se eleger por voto popular juízes das Cortes superiores é submeter o Judiciário à política. Ao se tornarem também candidatos, os togados naturalmente iriam se aproximam dos partidos políticos com mais força nas urnas, os quais normalmente também são os que controlam o Executivo. Uma vez que o posto no tribunal é conquistado, a chance de esse juiz evitar atritos com o governo é grande. O Judiciário, então, deixa de fazer o controle do Executivo. Além disso, aumenta o risco de decisões de algum dos poderes irem contra alguma minoria, pois o Judiciário já teria perdido a sua independência e, consequentemente, sua característica de atuação contramajoritária. 

Mesmo que Obrador consiga levar adiante o Plano C no Congresso, o Judiciário, ainda independente, pode derrubar o pacotão. Foi assim que aconteceu na primeira tentativa de López Obrador de aprová-lo, em 2022, quando ele tinha maioria qualificada.

O México, com todos os seus problemas sociais, incluindo uma guerra nunca resolvida contra os cartéis de narcotraficantes, conseguiu ao menos evoluir na política nas últimas duas décadas, criando instituições republicanas. Desmontá-las seria um retrocesso e tanto. Agora é torcer para que essas mesmas instituições possam continuar resistindo.

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  1. Leiam Popular Dictatorships do prof. Aleksandar Matovski para entender o que países como México, Rússia, Turquia e outros tem em comum. Estamos quase lá.

    1. Ou se quiserem algo mais leve, procurem pelo personagem Brozo (el Mañanero) no YouTube. Muita semelhança com o nosso circo…

  2. No México o PRI, no Brasil o PT, em Cuba, Nicarágua e Chile os PCS é a América LatRina descendo a ladeira rumo ao caos.

  3. Penso que o sistema de escolha dos juízes é crítico, até por vermos os senadores daqui aliviando no quesito ‘notório saber jurídico’ e pensando mais no futuro voto pra se livrar de alguma maracutaia

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